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Notas à margem

Textos escritos em cadernos, em guardanapos, em folhas encontradas ao acaso, sempre a propósito, nunca de propósito. isto é "vou escrever sobre isto". Não é assim que funciono.

Textos escritos em cadernos, em guardanapos, em folhas encontradas ao acaso, sempre a propósito, nunca de propósito. isto é "vou escrever sobre isto". Não é assim que funciono.

Notas à margem

21
Mar21

Formiga 17

Zé Onofre

                    17

20/10/969

Queria ser pombo bravo para livremente voar.

Levantar voo e ir por esses ares além,

Sem saber a que pinhal irá parar,

Ou se anda apenas num eterno vai e vem.

 

Ir sem remorsos, sem medo de magoar alguém.

Sair como ligeira brisa e ir, ir sem parar.

Percorrer todos os segredos que a vida tem,

E nessa viagem esquecer tudo e recomeçar.

 

Queria ser como tu, pombo, sem sítio para poisar.

Andar, sempre em círculos que fosse, tudo bem,

 Partir, sem rumo, sem rota, nem carta de marear

 

Quando chego quase lá, desisto e a tristeza vem.

Vejo-me incapaz de ir como ave sem ninho, nem lar.

Analiso-me profundamente, olho-me com desdém.

                                   Zé Onofre

20
Mar21

Formiga 16

Zé Onofre

                                  16

18/12/969

Ei-lo que vem a arrastar-se

Arfante e fumegante.

Na coluna de fumo e névoa do vapor

Avisto a Livração.

Adeus colégio,

 Até ao ano.

            Zé Onofre

20
Mar21

Formiga 15

Zé Onofre

                     15

15/12/969

Que aconteceu num ano,

Num dia, para me sentir grande.

A idade é a mesma.

Ontem era criança,

O mundo era todo verde, soalheiro,

E a vida era dourada

Que mundo é este

Que me pergunta o que quero,

Que me interroga sobre a liberdade.

E passou apenas um ano e um dia

                      Zé Onofre

20
Mar21

Formiga 14

Zé Onofre

                       14

10/12/969

Ser maluco, ter uma vida inventada.

Ser ave, sobrevoar o mundo.

Ser flor, embelezar a vida.

Vivo a vida como ela é,

Não sobrevoo o mundo

Não embelezo a vida.

Se fosse ave-flor-maluco,

Sobrevoaria o mundo

Embelezaria a vida

Que inventava.

                                  Zé Onofre

17
Mar21

Formiga 13

Zé Onofre

            13 

27/11/969

Sol.

Frio.

A Natureza está certamente enganada,

Ou serei eu?

Agora não é tempo de sol,

Ou sou eu que desejo a chuva?

Sinto que o sol se ri de nós, chuva!

Chuva, por favor,

Não esperes o Verão

Para, então, também tu te rires mim!

17
Mar21

Formiga 12

Zé Onofre

            12

26/11/969

Campo.

Árvores, atrás de árvores e mais árvores.

Por entre a ramagem se avista ela,

Uma torre branca.

Como esta me lembra uma outra.

Por entre as árvores vejo a minha janela,

E o riacho ora manso, ora tumultuoso,

A correr pelos campos verdes.

Por entre a ramagem das árvores a torre.

A saudade da torre cinzenta da minha igreja

Escurece a brancura desta.

O som cavo e martelado do sino da minha torre

Fica mais doce do que o som do sino                                   

Da torre branca que vejo

Para além das árvores.

17
Mar21

Formiga 11

Zé Onofre

             11

18/11/969

Aqui, à janela, vejo o passado.

Vejo-o como ditosos dias,

E neles imagens esbatidas

De muitas e lindas raparigas.

De trás para a frente

A mais antiga é já uma borradela

E as outras que se seguiram na vida.

Veio esta de férias, como era bela!

Outra, na escola, tocou-me como um raio.

Aquela desceu do alto monte.

Aqueloutra chegou em Maio.

Esta, em Agosto, veio beber à fonte.

A correr vêm a irmã da primeira

E uma do Minho. Baixo digo

“Namorei com elas todas

Mas nenhuma soube

Que namorou comigo”.

14
Mar21

Formiga 10

Zé Onofre

                          10

9/11/969

Era novembro, Outono.

Dia de Inverno, mais do que de Outono.

O céu, carregado de nuvens,

Connosco solidário, prometia chorar.

Nós ríamos,

De embriagada alegria

Numa festa organizada

Com sacrifício e saudades.

Saudades da terra ausente.

Saudades dos pais, irmãos, amores.

Saudades de tudo que nos era querido.

Ríamos e cantávamos

Abafando a tristeza numa nuvem de álcool.

                                         Zé Onofre

12
Mar21

Formiga 9

Zé Onofre

                         9

26/10/969

Não quero mais viver.

Viver por viver não é viver.

Não quero mais pensar.

Pensar por pensar não é pensar

Não quero mais sonhar.

Sonhar por sonhar

Sonhos que não se realizam

Que nos fariam viver, sem ser por viver,

Que nos fariam pensar, sem ser por pensar.

E sem as quais não se vive.

Assim mais vale não mais viver.

                                 Zé Onofre

                               2021/03/12

 

 

11
Mar21

Formiga 8

Zé Onofre

                        8

21/05/970

I

Há um local.

Há um tempo.

Há vida.

Há morte.

Há estudo.

Tudo enredado em conflito.

II

O local é este

Que habito neste tempo.

Este local

Em que eu, embora vivo,

Sinto que não há vida,

Mas apenas vida,

Nada mais que vida.

III

Olho em redor.

Tudo respira vida.

Neste tempo,

A vida irrompe nos campos,

Passa, em passos leves,

Ali a rasar a porta.

IV

Eu, aqui especado,

Olho os campos verdes,

As aves que descolam dos carvalhos,

E regressam,

Com bicos fartos,

Para despenhando-se nos ninhos.

V

Ouço sussurros leves,

A roçar na porta.

Se ao menos aqui,

Entre a porta e a janela.

Houvesse vida,

Não teria uma voz ensurdecedora,

A sufocar-me,

Quero vida.

VI

O local é este

E este é o tempo

Em que sinto a morte

Embalar-me nos seus braços,

Que tão docemente me aperta ao peito,

Que com carinhos me sufoca.

Contudo, dentro de mim,

Uma voz diz-me em segredo,

Que esta morte,

Não é a morte.

VII

Morto.

Não alcanço além das vidraças,

Não escuto os passos,

Que se silenciosos se arrastam,

Bem próximos da porta.

VIII

O local é este,

O tempo é este,

Em que vivo,

Em que morro

Quando o tempo é de estudo.

IX

Neste local,

Neste tempo,

De abre livros e fecha livros,

Leio páginas de enfiada,

Que mudas nada me dizem.

Atiro, sem coragem de o fazer,

Os livros ao ar

E com eles atiro palavras agudas,

Palavras iradas que ninguém ouve,

Isto não é estudo.

X

Que local

E que tempo

São estes?

Que se chocam na mente,

Em pensamentos cruzados,

Contraditórios,

Que ora afirmam uma coisa

E logo de seguida o seu contrário.

                                      Zé Onofre

                              Livração, 2021/03/11