48
22/05/970
I
Não entendo este local,
Não entendo este tempo.
Um jogo de espelhos
Que nos troca o entendimento
E os sentidos.
Que mostram que sou
O que não sou
Apesar de ser o que sou.
II
Não entendo este local,
Nem este tempo.
Um jogo de espelhos
Onde o que sinto,
Não é sentido como é,
É sentido como o seu contrário,
Apesar de ser sentido como é.
III
Sinto,
Sim, sei que sinto,
Um vazio.
Contudo é tão estranho este sentir
Que não me faz sentido,
Senti-lo
É um vazio
De que não tenho certeza de ser vazio,
E contudo é um vazio que me corrói o sentir.
IV
Hoje.
Sim, sei que hoje
O sol brilha.
Que triste sol é este,
Que se chama sol,
É radioso como o sol,
Porém não vejo o sol,
Parece que se esconde,
Atrás daquela bola brilhante
Que sorri pela janela
E que eu sei que é o sol.
V
Pelas vidraças
Saltam, para a minha mesa,
Imagens
De verdadeiros campos
Estendidos ao sol.
Fixo os olhos nas janelas
E as janelas escondem os campos.
Quero rebolar nos campos
E os campos lá tão longe,
Tão longe de serem campos,
Que pelas vidraças saltam para a minha mesa.
VI
De olhos estendidos para lá do horizonte,
Não sei se vejo árvores,
Ou se quero ver árvores até ao horizonte.
São árvores.
Ouço o vento segredar às folhas.
Será que vejo folhas,
Ou quero ouvir o vento nas folhas?
E as árvores esfumam-se.
Lá longe,
Onde as árvores estão,
Ando eu de ramo em ramo,
De ouvido encostado às folhas,
Que me contam os segredos do vento,
Enquanto o vento me leva suspenso pelo cabelo.
VII
De cabeça à roda,
Que tento firmar nestas mãos trémulas,
Sinto-me pleno.
Tão pleno que dos poros,
Solto golfadas de alegria.
As mãos ficam firmes,
A cabeça para,
E aquele pleno que sinto
Não o sinto como pleno
E, contudo, é pleno.
VIII
Que local é este,
Que tempo é este?
É um caleidoscópio
Destes dias sem sentido,
Em que me encontro perdido
Neste movimento giratório,
Entre o ser e o não ser.
Vejo-me livre.
A cada volta que dá,
Nasce um novo horizonte.
Sinto-me livre,
Livre,
Criador de mundos mágicos.
Liberdade, Liberdade,
Ecoam os horizontes presos nos espelhos.
E esta liberdade que sinto
Fechado no caleidoscópio,
Não é liberdade,
Contudo é assim a liberdade.
IX
Num dia deste tempo,
Sentado à mesa neste local,
Uma pauta de música em branco,
Caiu desmaiada nas minhas mãos.
E os dedos frenéticos
Correndo pela pauta em branco,
Tocam uma música tão sublime
Como os meus ouvidos jamais ouviram.
Sei, de certeza certa,
Que não há ali qualquer música,
Mas que a música que lá está
Estou seguro que foi a que ouvi.
X
Exausto
Do ser e não ser
Deste local e tempo,
Desabo nesta cama solitária.
Olho o teto,
Ouço uma flor,
Só pelo perfume que exala.
Levanto-me,
Abro a janela e debruço-me.
Lá está ela refletindo o luar,
Que se eleva pela ramagem.
É flor,
Sempre flor.
A flor é flor,
Quer, eu esteja presente, ou não.
Quer, eu esteja ausente, ou não.
Só a flor
Será sempre flor
E para sempre flor.
Zé Onofre