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Notas à margem

Textos escritos em cadernos, em guardanapos, em folhas encontradas ao acaso, sempre a propósito, nunca de propósito. isto é "vou escrever sobre isto". Não é assim que funciono.

Textos escritos em cadernos, em guardanapos, em folhas encontradas ao acaso, sempre a propósito, nunca de propósito. isto é "vou escrever sobre isto". Não é assim que funciono.

Notas à margem

30
Abr21

Formiga 51

Zé Onofre

                   51

04/06/970

I

Há muito que uma paz podre

Nos envolve com uma camada de surro.

Deitado à sombra dos carvalhos,

Olho o sol por entre a ramada.

Não deslumbro o sol

Que me beijava a pele

Nas margens do meu rio.

Este sol,

Que agora se estende,

Preguiçosamente, pelos campos verdes,

Nada tem com o sol

Que arrancava cintilações de prata

Das águas do meu rio.

Este sol não é um riso rasgado,

É um esgar cínico

Que com desdém me olha.

II

Até a chuva,

Quando goteja filtrada pelas folhas dos carvalhos,

Aquece mais

Que este sol envergonhado.

Esta chuva,

Que aqui cai,

É tão diferente da chuva

Que batuca lá longe

numa janela,

Que baila e canta no telhado

Da casa plantada no verde

Próxima do meu rio.

        Zé Onofre

30
Abr21

Formiga 50

Zé Onofre

                               50

01/06/970

Sou

Como muitas coisas são.

Sou.

Sou boneco moldado.

Não sou

Feito pelas minhas mãos.

Sou

Aos baldões pela vida.

Não fui,

Não posso ser.

Deitaram-me neste rumo,

Vim,

Cai aqui, levanta,

Para voltar a cair além.

Bato num penedo, espalho-me na areia.

De queda, em queda

Vim de arrastão.

Parei aqui sem ter sido.

Estou aqui onde não sou.

      Zé Onofre

29
Abr21

Formiga 49

Zé Onofre

                 49

25/05/970

Ontem pensei,

Pensei profundamente,

Sobre o amor.

O amor.

Que mistério é esse do amor.

Apenas sei que queria amar,

Tanto quanto queria ser amado.

Em tempos, pensei ter amado

E convenci-me que me deram amor.

Sem mais, nem menos sou assaltado

Por uma voz profunda

Que me segreda,

Nunca amaste nem foste amado.

Eu tenho tanto amor para dar.

Estarei a sonhar

Que é amor, amor, que posso dar?

Talvez nunca tenha dado amor,

E certamente nunca o tenha recebido.

Um dia,

Ah um dia, darei amor

E então receberei amor.

    Zé Onofre

29
Abr21

Formiga 48

Zé Onofre

                        48

22/05/970

I

Não entendo este local,

Não entendo este tempo.

Um jogo de espelhos

Que nos troca o entendimento

E os sentidos.

Que mostram que sou

O que não sou

Apesar de ser o que sou.

II

Não entendo este local,

Nem este tempo.

Um jogo de espelhos

Onde o que sinto,

Não é sentido como é,

É sentido como o seu contrário,

Apesar de ser sentido como é.

III

Sinto,

Sim, sei que sinto,

Um vazio.

Contudo é tão estranho este sentir

Que não me faz sentido,

Senti-lo

É um vazio

De que não tenho certeza de ser vazio,

E contudo é um vazio que me corrói o sentir.

IV

Hoje.

Sim, sei que hoje

O sol brilha.

Que triste sol é este,

Que se chama sol,

É radioso como o sol,

Porém não vejo o sol,

Parece que se esconde,

Atrás daquela bola brilhante

Que sorri pela janela

E que eu sei que é o sol.

V

Pelas vidraças

Saltam, para a minha mesa,

Imagens 

De verdadeiros campos

Estendidos ao sol.

Fixo os olhos nas janelas

E as janelas escondem os campos.

Quero rebolar nos campos

E os campos lá tão longe,

Tão longe de serem campos,

Que pelas vidraças saltam para a minha mesa.

VI

De olhos estendidos para lá do horizonte,

Não sei se vejo árvores,

Ou se quero ver árvores até ao horizonte.

São árvores.

Ouço o vento segredar às folhas.

Será que vejo folhas,

Ou quero ouvir o vento nas folhas?

E as árvores esfumam-se.

Lá longe,

Onde as árvores estão,

Ando eu de ramo em ramo,

De ouvido encostado às folhas,

Que me contam os segredos do vento,

Enquanto o vento me leva suspenso pelo cabelo.

VII

De cabeça à roda,

Que tento firmar nestas mãos trémulas,

Sinto-me pleno.

Tão pleno que dos poros,

Solto golfadas de alegria.

As mãos ficam firmes,

A cabeça para,

E aquele pleno que sinto

Não o sinto como pleno

E, contudo, é pleno.

VIII

Que local é este,

Que tempo é este?

É um caleidoscópio

Destes dias sem sentido,

Em que me encontro perdido

Neste movimento giratório,

Entre o ser e o não ser.

Vejo-me livre.

A cada volta que dá,

Nasce um novo horizonte.

Sinto-me livre,

Livre,

Criador de mundos mágicos.

Liberdade, Liberdade,

Ecoam os horizontes presos nos espelhos.

E esta liberdade que sinto

Fechado no caleidoscópio,

Não é liberdade,

Contudo é assim a liberdade.

IX

Num dia deste tempo,

Sentado à mesa neste local,

Uma pauta de música em branco,

Caiu desmaiada nas minhas mãos.

E os dedos frenéticos

Correndo pela pauta em branco,

Tocam uma música tão sublime

Como os meus ouvidos jamais ouviram.

Sei, de certeza certa,

Que não há ali qualquer música,

Mas que a música que lá está

Estou seguro que foi a que ouvi.

X

Exausto

Do ser e não ser

Deste local e tempo,

Desabo nesta cama solitária.

Olho o teto,

Ouço uma flor,

Só pelo perfume que exala.

Levanto-me,

Abro a janela e debruço-me.

Lá está ela refletindo o luar,

Que se eleva pela ramagem.

É flor,

Sempre flor.

A flor é flor,

Quer, eu esteja presente, ou não.

Quer, eu esteja ausente, ou não.

Só a flor

Será sempre flor

E para sempre flor.

        Zé Onofre

28
Abr21

Formiga 47

Zé Onofre

                       47

21/05/970

I

Há um local.

Há um tempo.

Há vida.

Há morte.

Há estudo.

Tudo enredado em conflito.

II

O local é este

Que habito neste tempo.

Este local

Em que, embora vivo,

Sinto que não há vida,

Mas apenas vida,

Nada mais que vida.

III

Olho em redor.

Tudo respira vida.

Neste tempo,

A vida irrompe nos campos,

Passa, em passos leves,

Ali a rasar a porta.

IV

Eu, aqui especado,

Olho os campos verdes,

As aves que descolam dos carvalhos,

E regressam,

Com bicos fartos,

Despenhando-se nos ninhos.

V

Ouço sussurros leves,

A roçar na porta.

Se ao menos aqui,

Entre a porta e a janela.

Houvesse vida,

Não teria uma voz ensurdecedora,

A sufocar-me,

Quero vida.

VI

O local é este

E este é o tempo

Em que sinto a morte

Embalar-me nos seus braços,

Que tão docemente me aperta ao peito,

Que com carinhos me sufoca.

Contudo, dentro de mim,

Uma voz diz-me em segredo,

Que esta morte,

Não é a morte.

VII

Morto.

Não alcanço além das vidraças,

Não escuto os passos,

Que se silenciosos se arrastam,

Bem próximos da porta.

VIII

O local é este,

O tempo é este,

Em que vivo,

Em que morro

Quando o tempo é de estudo.

IX

Neste local,

Neste tempo,

De abre livros e fecha livros,

Leio páginas de enfiada,

Que mudas nada me dizem.

Atiro, sem coragem de o fazer,

Os livros ao ar

E com eles atiro palavras agudas,

Palavras iradas que ninguém ouve,

Isto não é estudo.

X

Que local

E que tempo

São estes?

Que se chocam na mente,

Em pensamentos cruzados,

Contraditórios,

Que ora afirmam uma coisa

E logo de seguida o seu contrário.

            Zé Onofre

28
Abr21

Formiga 46

Zé Onofre

                    46

13/04/970

Noite.

O momento do dia

Em que, sem testemunhas,

Posso libertar o pensamento,

Livre de censuras.

Agora, sentado nesta pedra,

Contemplo a imensidão do espaço,

Fito o infinito,

Para lá dos raios leitosos do luar,

Para além do véu das estrelas,

Do nada.

De lá,

De onde me escapuli,

Uma campainha estridente,

Arrasta-me brutamente,

E deixa-me cair em queda livre infinita.

Ainda balançando,

Entre o sonho e a realidade,

Penso,

Estive quase lá.

      Zé Onofre

27
Abr21

Formiga 45

Zé Onofre

                        45

12/04/970

I

Chuva.

Primavera

Árvores tristes,

Como pedintes em romaria,

Expõem os seus gomos enfezados.

Outros tempos,

Outras Primaveras,

Que eram sempre Primaveras,

Com chuva, com sol brando,

Anunciavam o Verão.

II

Essas Primaveras,

Não dependiam do tempo,

Livres viviam dentro de mim.

Expressavam-se em correrias loucas,

Aventuras do Arco-da-velha,

Caminhadas sem fim e sem rumo,

Explorador de ouro em fundas minas,

Escavadas no pasto das vacas,

Que a meu lado ruminavam o tempo.

III

Às vezes,

Apesar desta Primavera tão diferente,

Num sonho acordado,

Sentado nos penhascos,

Onde o mar se desfaz em espuma,

Viajo sobre as ondas até ao fim do mundo.

Outras vezes,

Mergulho ao fundo de mim mesmo,

Espelho desfeito em mil pedaços,

Vejo imagens misturadas,

Onduladas no vento das recordações,

Sonhos destroçados ao entardecer.

IV

Olhando a chuva escorrendo pala janela,

Assalta-me um desejo louco,

E sair voando, desta cadeira que me ata,

A apanhar os cacos dos sonhos quebrados,

A minha vida.

V

Viver é surpreender o futuro.

Viver é sair para a aventura.

Viver é o improviso.

Viver é expor com verdade as emoções.

Viver é realizar os sonhos por sonhar.

Viver é deixar-se ir no vento.

Viver é respirar cada segundo como se fosse o último.

VI

Apesar desta Primavera que me oprime,

Quero com estes remos mesmo partidos,

Navegar no Rio dos impossíveis.

Remar contra a corrente.

Neste barco a cair aos bocados

Chegar, não sei onde,

Apenas Chegar

Poderia ser um barco à vela

Um bote a motor.

Tinha que ser a remos o barco,

Mesmo que feito de caruncho,

Mesmo sabendo que se pode

Diluir em pó nas águas correntes.

Tenho de tentar a viagem

Mesmo que o final seja outro,

 Que não o esperado.

            Zé Onofre

24
Abr21

Formiga 44

Zé Onofre

                     44

12/3/970

Esta noite

Tudo que me foi agradável,

Todas as alegrias

Dos anos idos,

Vieram até mim.

Há tempos dizia

Para recordar, nada de interessante há no meu passado

Comparado com o que ouço dos outros.

Hoje vi que havia muito para recordar

No meu passado!

Foste tu, pequena flor

Como eu te amava.

Como eu te amava

Nos dias que caminhávamos lada a lado.

A vida traçou-nos caminhos diferentes,

Os nossos passos separaram-nos,

O tempo alongou-se tanto

Que pensei ter-te esquecido,

Que te esfumaras no horizonte.

Um dia vieste visitar-me num sonho.

Recusei-o, tentei esquecê-lo

E a ti com ele.

Outro dia, num outro sonho,

Era eu que ia até ti,

Que suplicava para me acompanhares

E tu recusavas.

Por fim acedeste

E lado a lado caminhamos.

Impossível estás morta,

Esquecida.

Contudo sei que vives

Lá longe de mim

É certo, mas em mim como recordação.

Fui omisso, incapaz de falar contigo,

Faço sozinho o caminho que veio.

De ti só me resta dizer

Pertences ao meu belo passado.

              Zé Onofre

22
Abr21

Formiga 43

Zé Onofre

                     43

1/3/970

É noite.

Mais um dia passado

Ao ritmo da Terra, aos trambolhões pelo espaço,

Contínuo movimento sem princípio, nem fim.

O sol-posto traz uma sombra do passado,

E nela vislumbro-te.

Vens até mim manso, muito manso,

Num raio de luar,

No olhar de uma estrela.

Vens,

Toda tu

Os teus cabelos

Os teus olhos,

A tua boca,

Os teus sorrisos.

Nesta solidão,

Corro para ti certo que já ninguém nos podia separar.

Hoje, passados anos,

Vens até mim

Rompendo as pedras grossas desta solidão.

Nesses momentos, horas felizes,

A manhã rompe.

Era mentira que íamos juntos,

De mãos dadas,

Pela vida além.

O dia passa e volta a noite

E tu a povoar o meu sono.

        Zé Onofre

20
Abr21

Formiga 42

Zé Onofre

                           42

21/2/970

Sem rumo, caminho

Passo atrás de passo.

Magnetizado paro.

Uma criança.

Rota, descalça, feliz

Ri, canta, salta.

Vejo-a a ela ou a mim

Descalço nos montes,

Calções rotos,

Pernas arranhadas de areias e espinhos,

Com grilos em caixas a cantar,

Na poça grande, a fazer que nado?

Regresso aos campos,

A brincar na estrada,

A correr ao vento,

Sacola às costas a voar.

Volto.

Não posso entrar no seu reino,

Não as posso magoar,

Com hipocrisia desfazer-lhes os seus sonhos.

Fico-me de longe a vê-los brincar.

Criança riqueza infinda.

Ser criança toda a vida,

Viver sem preocupações.

Criança

Que segredos não esconde,

Que reinos não descortina,

Que tesouros não se encontram?

Criança viver sem horas nem lugar certo,

Sem saber de ontem nem de amanhã,

Viver a aventura de um sonho,

Voar aos céus,

Irmã dos animais.

Criança

Dar vida às pedras

Das mais banais fazer ricos tesouros.

Criança

Ser o mágico dos mágicos,

Viver num segundo

Toda a magia da vida.

            2021/04/20

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