Coimbra 6
6
04/11/971
I
Noite.
Gosto da noite
Seja ela de luar,
Seja ela estrelada,
Ou pesada cor de chumbo.
Aqui é sempre igual.
As luzes da cidade
Como cortinas densas,
Escondem as estrelas,
O luar
Fazem o céu sempre sombrio.
II
À procura da noite,
Tal qual ela é,
Entro no seu ventre,
Largo-a de madruga
Vou directo à sala de aulas.
Ah, as aulas
Não gosto delas
É a única certeza que tenho,
Não tenho dúvidas.
Definitivamente não gosto das aulas.
III
A noite,
Tem algo de mágico
Que me faz falar.
Falar, falar, falar
Se encontro algum amigo
Que com desconhecidos não converso.
Já com amigos
Que apanhe distraídos
Acabaremos a noite já aurora
Com um cálice de cachaça
Virgem.
Se por acaso
O amigo me vê de um lado
E finge olhar o nada
Sigo os meus próprios passos,
E discuto comigo próprio.
IV
Hoje vamos falar de poesia.
Aqui que todos nos ouvem,
Aviso desde já que não sou poeta,
Não vão vocês pensar coisas.
Sim,
Louco posso ser,
Até é pena não perder a razão de vez,
Agora poeta?
Arreda Satanás.
V
Pois a poesia é um assunto sério,
Seriíssimo.
Pois tenho toda a razão,
Não me vou contradizer a mim próprio,
Creio mesmo que é o cume
Da seriedade.
Fica desde já lavrado em acta
Esta Verdade Universal,
Eterna,
A poesia é a essência da realidade.
Até à próxima síntese axiomática.
VI
Meus pobres amigos.
Maltratados bancos da tasquinha.
Massacradas mesas da tasquinha.
Pacientes empregados da tasquinha.
Quando se me solta a língua,
A perorar, seja sobre o que for,
Sai palavra atrás de palavra,
Com o tom subindo, subindo.
VII
Desgraçadas pernas minhas.
Fugi árvores da avenida.
Aves acabou-se-vos o descanso
De um dia de trabalho
Voando sem parar do ninho,
Aos canteiros,
Catando o magro sustento.
Ides ouvir este pregador,
Silencioso,
Que faz discursos de alta filosofia
Às atentíssimas pedras da calçada.
VIII
Todas as noites
Sou convidado a orar
Sobre tudo e sobre nada.
O dia, ciumento,
Bem insiste para que me pronuncie
Seja sobre o que for.
Bem pode tirar o cavalinho da chuva,
Não merece que me levante
De madrugada,
Antes das dezassete.
A noite
Estou pronto para ela
Ela está desejosa de me ouvir.
IX
A noite ouve-me,
O Mundo é um Manicómio
Quem contesta?
Responde o silêncio total.
A virtude…
Palmas e vivas para a virtude.
A honestidade…
Viva a honestidade
E e e e e a a a a vir virgin virgindade?
Nem palmas.
Nem vivas.
Nem pateadas.
Um silêncio de morte.
Uma torrente de pensamentos em choque.
Pronto. Pronto.
A virgindade, masculina ou feminina,
Ficará para as calendas gregas,
X
Cheguem, agora, aqui
Vamos falar baixinho.
Ei, aí D. Tília
Cale as suas folhas,
Que o assunto é de suma importância.
Aí senhor de que não sei o nome.
É um candeeiro,
Peço desculpa,
Mas já agora cale um bocadinho a sua luz.
Bem, estamos prontos
Para discutir o próximo tema.
Desde já faço o seguinte aviso,
Afirmo que nada afirmarei.
Vocês falam primeiro,
Certo?
Descalcem lá a bota.
A loucura, a loucura, a loucura,…
Um vendaval de palavras.
Um borborinho que fecha os ouvidos.
Um bracejar das árvores.
Tantas intensidades diversas do lampião.
Eu?
Apreciava a loucura no seu esplendor.
XI
Resumindo e Concluindo,
Gosto da Noite,
Depois do pôr-do-sol,
Até ao romper da aurora.
Não gosto das aulas,
Se ainda fossem à noite…
Gosto de falar.
Os paralelos,
As árvores,
Os candeeiros
São bons ouvintes.
Um amigo louco
Não me escapa.
Nas perlengas que perlengo
Abordo qualquer assunto,
“Nada do que é humano me é estranho”,
Desde que não ofendam
A moral e os bons costumes.
Última conclusão,
O Mundo é um Manicómio,
Nós somos todos Loucos.
XII
Acordei alta madrugada,
Pelas dezanove horas,
A esferográfica na mão,
Folhas de papel gatafunhados.
Alguém, certamente conseguiu traduzir os rabiscos,
Acrescentou em boa letra,
Pensas que só tu adormeces
Ao sou de rabiscos de palavras loucas?