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Notas à margem

Textos escritos em cadernos, em guardanapos, em folhas encontradas ao acaso, sempre a propósito, nunca de propósito. isto é "vou escrever sobre isto". Não é assim que funciono.

Textos escritos em cadernos, em guardanapos, em folhas encontradas ao acaso, sempre a propósito, nunca de propósito. isto é "vou escrever sobre isto". Não é assim que funciono.

Notas à margem

25
Jun21

Nasceu uma criança

Zé Onofre

Nasceu uma criança

 

Era uma vez um homem e uma mulher.

Ele era um operário.

Ela era uma operária.

Tiveram que ir à cidade. Foram a pé. Levavam nas suas mãos a magra comida de uma ceia.

Partiram.

A mulher estava para parir. Ia amparada no braço do homem.

Sozinhos caminham pela tarde de um dia sereno.

Era noite quando chegaram, derreados e cansados, à cidade. Era longe a cidade e as pernas curtas.

Procuraram onde passar a noite. Bateram a todas as portas, em vão, não encontraram.

A mulher, cada vez mais cansada, caía aqui, acolá, ali e mais além.

O homem, desesperado, ganha ânimo e caminha.

Tinha que haver uma porta, uma única, que se lhes abrisse.

E apareceu. O cansaço fez-se descanso numa obra em construção. Como ladrões entraram. Como invasores abriram o seu saquitel de onde tiraram o seu magro sustento – pão, queijo e figos.

O cansaço encostou-os às paredes húmidas em construção e logo adormeceram.

Já dormiam na noite escura quando a mulher sentiu que o seu bebé, sangue do seu sangue, iria nascer ali.

Ali, naquele prédio em construção, tendo como luz, apenas, a luz das estrelas distantes.

O bebé nasceu, deu um grito, estava vivo.

Uma criaturinha filha de um operário e de uma operária, de um homem e de uma mulher. Embalada num carrinho, sacos de cimento por colchão e o manto do pai e da mãe por agasalho.

É uma criatura humana, como outra nascida de um homem e de uma mulher. Que virará ser humano como um outro qualquer.

E a noite fazia-se dia.

O homem, a mulher, e a criança já partiram. Já caminhavam pela cidade à fazer a sua vida.

Anoitecia quando chegaram a casa.

E os dias e as noites sucediam-se, até que a criança se fez adulta.

Adulta que sabia qual iria ser o seu futuro.

Adulta que conhecia a vida dos outros.

Adulta que se juntou a outras pessoas adultas.

Pessoas adultas que unidas acreditam que até as pedras darão pão para que todos o  tenham.

Incrédulas, muitas pessoas insultavam-nos de ofenderem a lei dos homens e a lei de Deus.

Aquelas pessoas adultas teimavam, e teimavam chamando por todas as pessoas.

Muitas foram as que as seguiram. E começaram a acreditar.

Os dias, as semanas, os meses e os anos iam passando, e o número de pessoas aumentava.

Já eram tantas que os poderosos de várias nações, de diversas religiões, de diferentes culturas se sentiram ameaçados.

Todos eles se uniam para destruir aquela força nascente.

Inventaram calúnias. Diziam que falavam em nome das forças do mal. Que pretendiam acabar com os privilégios dos seus superiores. Que queriam roubar o pão para o repartirem por todos.

As calúnias, os discursos mentirosos, tantas vezes repetidas levaram algumas pessoas a debandarem. Muitas delas traíram a nova esperança que se erguia.

E um dia, covardemente, mataram numa cruz, aquela criança que um dia nascera num colchão de sacos de cimento.

Hoje esperamos o dia, em que aquele nascimento igual a tantos outros, não passe de uma memória. Em que as crianças, e os homens e as mulheres não acreditem que houve dias assim.

Então, nesses tempos que virão um dia, será Natal.

 

Zé Onofre

11
Jun21

Souto 2

Zé Onofre

2

 25/06/72

Contos de ódio,

De amor e raiva,

De loucura e liberdade.

Contos libertários,

Libertadores

De medos,

De tabus.

Contos de vida

Do que há e não há,

Do que haverá e não haverá.

Contos da força humana,

Dos humanos defeitos,

Das humanas esperanças,

Dos seus humanos desesperos.

Contos do tudo.

Contos do nada.

          Zé Onofre

11
Jun21

Souto 1

Zé Onofre

1

06/03/972

 Quem é o louco?

Eu?

Tu?

Nós?

Ou os outros?

Onde fica o Manicómio?

Quem são os psiquiatras?

Onde estamos nós,

Psiquiatras e loucos,

Loucos num mundo louco?

Movimento.

Acção.

Pensamento.

Estamos nós loucos

No mundo louco.

Onde está o manicómio?

Quem são os psiquiatras?

Nós ou os outros,

Ou, nós e os outros?

Sós

No temporal da vida.

Isolados na Terra perdida,

Na Terra louca.

Sol.

Movimento.

Astros.

Cosmo.

Manicómio.

Loucura.

Febre, Temperatura.

Quem diferencia os médicos dos loucos?

Para onde vou?

Quem sou?

Quem somos?

Nós e vós?

Todos loucos

Numa vida trepidante,

Rolante a mil à hora,

Estupidificante,

Máquina em movimento

Em moto próprio.

       Zé Onofre

10
Jun21

Coimbra 13

Zé Onofre

01/12/971

Em Coimbra cheia de luz

Passada, perdida

Na escuridão da noite

Do dia encerrado.

Coimbra

Prisão

De pensamentos livres.

Coimbra,

Desgostos, desilusões,

Decepções, frustrações.

Coimbra

Crua e nua.

Coimbra

O sete da eternidade.

Coimbra

A dor,

O sofrimento,

A desolação.

Coimbra,

A alegria de convívios.

Coimbra

Alegre,

De movimento e acção.

Coimbra,

Saudade do tempo

Que futuramos,

E que poderá vir a ser.

    Zé Onofre

 

08
Jun21

Coimbra 12

Zé Onofre

18/11/971

 

Hoje

Dia alegre

Na cidade

Triste.

Hoje

Dia triste

Na cidade alegre.

Hoje

Alegre

Na triste cidade.

Dia,

Dia triste

Hoje.

Cidade morta

Em luz apagada

Da desilusão.

Desilusão

Sempre presente

Em cada segundo

Do dia triste

Na cidade alegre.

Por cada dia,

Hoje,

Que passa

Um momento,

Uma alegria

Que passa,

Que vem,

Que vai,

Não se apanha,

Alonga-se

Pela noite de luz.

Na cidade alegre

Hoje,

Dia triste,

Sempre em cada dia e noite,

Luz apagada

Da discussão acesa.

Na cidade triste,

Vivi 

Dias alegres,

Poucos.

Na cidade alegre,

Dias tristes

Muitos.

Na noite,

Da cidade,

Que vem,

Que vai

Que se alonga

Pela manhã

No sol nascente

Que se põe

Que se levanta

Que vai pelo dia

Em noites

De estrelas frias

No céu vazio

De alegrias.

Na cidade

Que se diz triste

Em dias

Sempre iguais,

Em que Lázaro

Que eu sou,

Fico sempre

Em portal

à espera que caia

O que não peço,

Que quero

E não semeio.

No dia triste,

Na cidade alegre

Hoje, dia que passa,

Que vem,

Que vai,

Que se alonga

Pela madrugada

Em sons de música,

Em rolos de fumo

Que expilo

Em gestos que não meus,

São de outros

Que vão,

Que vêm,

Que são,

Que têm voz,

Que não monologam

Em papel branco.

Em dia alegre

De palavras tristes,

Encho em cada dia

Que passa,

Que vem,

Que vai,

Que se alonga

Em movimentos nervosos

Das mãos

Pendentes do corpo

Pesado

Do fumo,

Do álcool

Que não me alienou,

Que não bebi

E ficou no copo

Só solitário

A fitar

Para a minha boca sequiosa.

Coitado do copo

Convencido que desejo

O seu líquido,

Mas o que me mataria a sede

Seriam palavras

Que expliquem,

Que digam,

Que contem

Coisas que os outros

Não conheçam.

Sons mudos

De voz calada

Áspera, rouca,

Do fumo

Que engulo,

Que expilo

Pela boca

Seca, irada,

Crispada,

Seca.

Sequiosos,

Os lábios sentem-se

Sem palavras.

Tarde

Ó tarde

Tão bela

Tão boa

Porque foste?

Gostei tanto

De falar palavras impensadas,

Mas sinceras

Vindas das profundas,

Para explicar.

Não receitas,

Não remédios,

Não lidas em livros,

Mas genuínas,

Minhas.

Na tarde,

Com o sol

Se foi a alegria.

A tristeza

Que se aproxima

Com a noite,

Que entre sons,

Bocas secas,

Palavras afogadas

Em álcool,

Ensombradas pelo fumo,

Que nem bebi,

Dos cigarros que não fumei.

      Zé Onofre

07
Jun21

Coimbra 11

Zé Onofre

18/11/971

Hoje

Dia alegre

Na cidade

Triste.

Hoje

Dia triste

Na cidade alegre.

Hoje

Alegre

Na triste cidade.

Dia,

Dia triste

Hoje.

Cidade morta

Em luz apagada

Da desilusão.

Desilusão

Sempre presente

Em cada segundo

Do dia triste

Na cidade alegre.

Por cada dia,

Hoje,

Que passa

Um momento,

Uma alegria

Que passa,

Que vem,

Que vai,

Não se apanha,

Alonga-se

Pela noite de luz.

Na cidade alegre

Hoje,

Dia triste,

Sempre em cada dia e noite,

Luz apagada

Da discussão acesa.

Na cidade triste,

Vivi 

Dias alegres,

Poucos.

Na cidade alegre,

Dias tristes

Muitos.

Na noite,

Da cidade,

Que vem,

Que vai

Que se alonga

Pela manhã

No sol nascente

Que se põe

Que se levanta

Que vai pelo dia

Em noites

De estrelas frias

No céu vazio

De alegrias.

Na cidade

Que se diz triste

Em dias

Sempre iguais,

Em que Lázaro

Que eu sou,

Fico sempre

Em portal

à espera que caia

O que não peço,

Que quero

E não semeio.

No dia triste,

Na cidade alegre

Hoje, dia que passa,

Que vem,

Que vai,

Que se alonga

Pela madrugada

Em sons de música,

Em rolos de fumo

Que expilo

Em gestos que não meus,

São de outros

Que vão,

Que vêm,

Que são,

Que têm voz,

Que não monologam

Em papel branco.

Em dia alegre

De palavras tristes,

Encho em cada dia

Que passa,

Que vem,

Que vai,

Que se alonga

Em movimentos nervosos

Das mãos

Pendentes do corpo

Pesado

Do fumo,

Do álcool

Que não me alienou,

Que não bebi

E ficou no copo

Só solitário

A fitar

Para a minha boca sequiosa.

Coitado do copo

Convencido que desejo

O seu líquido,

Mas o que me mataria a sede

Seriam palavras

Que expliquem,

Que digam,

Que contem

Coisas que os outros

Não conheçam.

Sons mudos

De voz calada

Áspera, rouca,

Do fumo

Que engulo,

Que expilo

Pela boca

Seca, irada,

Crispada,

Seca.

Sequiosos,

Os lábios sentem-se

Sem palavras.

Tarde

Ó tarde

Tão bela

Tão boa

Porque foste?

Gostei tanto

De falar palavras impensadas,

Mas sinceras

Vindas das profundas,

Para explicar.

Não receitas,

Não remédios,

Não lidas em livros,

Mas genuínas,

Minhas.

Na tarde,

Com o sol

Se foi a alegria.

A tristeza

Que se aproxima

Com a noite,

Que entre sons,

Bocas secas,

Palavras afogadas

Em álcool,

Ensombradas pelo fumo,

Que nem bebi,

Dos cigarros que não fumei.

         Zé Onofre

06
Jun21

Coimbra 10

Zé Onofre

             10

08/11/971

Diz-me

Anda, fala,

Não fiques mudo.

O meu silêncio 

Diz muito

Não o entendes?

Repara,

Vê o que ele quer dizer.

Por que te fazes desentendida?

Vá,

Explica-te.

Não entendes,

Não percebes,

Ou não queres?

Diz,

Abre-te.

Estou aberto,

Explico-me,

Para quê palavras?

Os sons são a mais.

Não, não falemos.

Percebes,

Vê como o silêncio é belo?

Porta fechada

Aos sons.

Gosto de palavras

Mudas.

Não me entendes?

Digo mais.

Que queres dizer?

Este papel é só para mim,

Quem te permitiu que o lesses?

Não sabes que apenas ao papel conto os meus segredos?

        Zé Onofre

05
Jun21

Coimbra 9

Zé Onofre

              9

08/11/971

Diz-me

Anda, fala,

Não fiques mudo.

O meu silêncio  

Diz muito

Não o entendes?

Repara,

Vê o que ele quer dizer.

Por que te fazes desentendida?

Vá,

Explica-te.

Não entendes,

Não percebes,

Ou não queres?

Diz,

Abre-te.

Estou aberto,

Explico-me,

Para quê palavras?

Os sons são a mais.

Não, não falemos.

Percebes,

Vê como o silêncio é belo?

Porta fechada

Aos sons.

Gosto de palavras

Mudas.

Não me entendes?

Digo mais.

Que queres dizer?

Este papel é só para mim,

Quem te permitiu que o lesses?

Não sabes que apenas ao papel conto os meus segredos?

         Zé Onofr

05
Jun21

Coimbra 8

Zé Onofre

               8

____/11/971

O discurso começa

Ganha a sua autonomia

Vai por aí além.

Tropeça aqui,

Tropeça ali

Em qualquer momento,

Por qualquer motivo.

Tropeça,

Mas o sete continua lá

Como infinitésima parte,

Ou como construtor de eternidades.

O sete

Pode ficar aquém,

Ou passar além,

Que ele, só por si, nada define.

1,2,3,4,5,6,7

Princípio,

Fim,

De quê?

Sei lá?

De qualquer coisa.

Base estrutural,

Cúpula,

Meio,

Recheio?

O certo e indiscutível

É que todos têm o se sete.

Eu tenho o meu.

Cada um de vós tem o seu.

O sete, desde já o digo,

Não é de modo algum absoluto.

Escolhi o sete,

Escolha aleatória.

Certamente

Nada é totalmente aleatório.

A realidade

Impõe-nos a sua realidade.

Sete

Dias de trabalho e descanso.

Nele tudo acontece.

O que sei, sem dúvidas,

E com toda a certeza

É que o sete

É o que fizermos dele.

Alcancei o fim

É sétimo.

Fiquei aquém

Será “n” centésimas

Do alcançável.

Bem,

Com o sete

Chegaremos à eternidade.

Na eternidade

A unidade sete

Deixará de ser sete

Para se tornar

A infinitésima milionésima parte

De um outro qualquer sete.

Como disse,

Digo-o sem dúvidas

E com toda certeza

Que se pode ter,

Dentro do possível.

Contra o que muitos pensam

Um número,

Qualquer que ele seja,

Não é objectivo

Vem carregado de subjectividade.

Este é que é o verdadeiro sete

A interrogação.

A resposta,

A dificuldade,

O verdadeiro sete,

É a resposta.

Pois, é que há muitas respostas,

E aí é que está o sete.

Ah, entendi.

Não gostam do sete?

Então recomeçarei…

Com o cinco.

- Silêncio profundo. –

Brado uníssono

- Não! -

               Zé Onofre

02
Jun21

Criança

Zé Onofre

11/1/978

                           Criança

Ó criança, perdida

Nos meandros 

Das teias

Que não fabricaste,

És

lampejo gritado

Nos sons da noite!

És

Relâmpago deslumbrante

De sons em cântico.

És

Presente espraiado

Nas margens do futuro.

Canto-te

Cor florscida 

No chão

Semeado de pedras.

Canto-te

Som ouvido

No pântano semeado de medo.

Canto-te bem alto,

Alegria das nossas mãos!

        Zé Onofre

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