Saltar para: Post [1], Comentários [2], Pesquisa e Arquivos [3]

Notas à margem

Textos escritos em cadernos, em guardanapos, em folhas encontradas ao acaso, sempre a propósito, nunca de propósito. isto é "vou escrever sobre isto". Não é assim que funciono.

Textos escritos em cadernos, em guardanapos, em folhas encontradas ao acaso, sempre a propósito, nunca de propósito. isto é "vou escrever sobre isto". Não é assim que funciono.

Notas à margem

10
Dez22

Dia de hoje 80

Zé Onofre

        80

 

022/12/09

 

Decidiu partir.

Nada justificava ficar na aldeia

A que nada o prendia.

A mãe,

Que ali o segurava,

Falecera.

Os irmãos espalhados.

Os amigos, 

Perdidos pelo mundo.

 

Que deixava para trás?

Uma vida vivida entre trabalho e casa

A leitura apressada do jornal

No canto do café.

A arrogância dos senhores da Terra,

Que vinham passar setembro na aldeia,

Receber as rendas dos caseiros,

Acompanhar as vindimas,

Enquanto os filhos se exibiam no Largo.

 

Chegou ao fim da viagem.

Olhava as paredes da estação

De olhos esbugalhados.

Agora que iria fazer,

Perdido que estava?

 

Certamente fora um erro

Partir "à cega seja eu".

Talvez fosse melhor

Regressar no mesmo comboio.  

 

Uma mão pousou-lhe no ombro

Coisas da sorte,

Ou do destino.

Era uma velha mão amiga

Que o levou até à sua residência,

Uma casa numa ilha,

Onde conseguiu alugar

Uma cozinha,

Um quarto/sala.

Dava até arranjar coisa melhor.

 

A rotina continuava a mesma,

Apenas numa Terra diferente.

Trabalho, casa e café.

O que seria provisório

Tornava-se definitivo.

Aqui a miséria não vai de porta em porta

Vive de mãos esticadas

Nos umbrais das portas 

Ao lado dos seus colchões de cartão.

Os donos da Terra viviam em palacetes

A renda que cobravam aos trabalhadores,

Eram os salários baixos que pagavam.

 

Resolveu transpor fronteiras,

Apesar de não ser propriamente jovem.

Parecia que a miséria perseguia

Os seus passos.

Agora a miséria vivia nos túneis dos metros.

A pobreza em bidonville        

Nos muitos bafejados

Com a mesma sorte macaca.

 

A diferença entre o patronato

E o povo trabalhador

Tornava-se mais visível.

Ali os Senhores

Da Terra e do Dinheiro

Viviam em casas apalaçadas,

Em bairros elegantes,

Bem longe do suor

De quem os enriquecia.

Deixou-se ficar

Enquanto pode trabalhar.

Então resolveu voltar,

Para que a terra que lhe fora berço,

Lhe fosse também caixão.

 

Numa tarde de dezembro

Estava sentado num toco,

Num ponto alto

A observar a aldeia.

Rememorava cada pessoa.

Quantos estariam ainda vivos?

Quantas crianças seriam adultas?

 

Por ali se deixou ficar

Revivendo os passos antigos.

Quando começou a escurecer

Desceu à aldeia

Foi percorrendo veredas,

Caminhos e largos,

Acabando no maior,

O largo da igreja.

 

Dirigiu-se ao café,

À mesma mesa do canto.

Um empregado desconhecido

Atendeu o seu pedido

Não dando qualquer sinal

De o conhecer.

 

A noite fria ia-se adiantando.

O largo ganhava vida

Com pessoas a entrar na Igreja.

Só então lhe ocorreu

Que era véspera de Natal.

Pagou,

Saiu e, também ele,

Foi para a Missa do Galo.

 

Entrou pela porta do fundo,

Pareceu-lhe que alguém

Lhe guardara o lugar no banco

Encostado à parede.

 

A missa começou,

Nem se apercebeu 

Da mudança de Padre,

Perdido nas suas lembranças.

 

Voltou ao presente

Na altura do beija-menino.

Via na postura das pessoas

O cumprimento de uma tradição,

Não um ato de comoção.

As crianças iam na fila

Com um ar aborrecido

 

Já fora, no Largo,

Via as crianças agitadas

A apressar os pais.

Queriam ir para casa,

Desembrulhar as prendas,

 

Mais ricas, ou mais pobres.

Para elas eram O Natal.

 

Desesperado, desapareceu na noite.

   Zé Onofre

6 comentários

Comentar post