Souto 22
22
05/12/975
De Viagem
I
Se observares bem o postal
Concluirás que não há somente
Uma vista a perder-se longamente
De que a ponte é o centro por sinal.
Se acaso o teu olhar não for igual
Ao da atarefada e cansada gente,
Verás que os cabos são uma corrente
De muito esforço, dor, suor e sal.
Notarás ali naquela elegante ponte
Não há só ferro ordenado e cravado
Mas algo que desce por ela do monte
Até este lado do Tejo alargado.
Sob o tom vermelho se esconde,
Tinta e sangue bem misturado.
II
À espera
Neste canto de um café
A viver as pessoas em mim
E a ser vivido nelas,
Ou simplesmente ignorado.
Aqui neste canto, onde me escondo
Do ruído, dos gritos, do fumo e dos olhares,
Tento descobrir homens livres,
Encontro servidão.
Ali,
Naquelas paredes invadidas por cartazes.
Na imprensa escrita
Onde o pensamento se materializa
Em palavras livres,
E não canal de ressonância
Das palavras dos outros.
Aqui,
Neste canto do café
Onde continuo à espera,
Ser anónimo e sem importância,
Talvez ignorado de todos,
Ouço falar de mim.
Não de mim propriamente,
Mas daquele ser genérico e generalizado,
Nas bocas desconhecidas que me desenham,
No grito vermelho das palavras
Que escorrem pelas paredes.
Aqui,
Nesta periférica Lisboa
Onde a vida se faz,
Em ritmos monotonamente cadenciados.
Dia, após dia, após dia ainda,
Presos a uma roda que oprime
A que se chama progresso,
A que se chama civilização.
Aqui,
Onde espero encolhido neste canto,
Tentando perceber os outros,
Os seus pensamentos,
As suas esperanças,
Através dos seus gestos,
Das suas palavras.
Distraído que sou
Deixo-os escapar por entre os dedos.
Zé Onofre