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990/11/21
I
Caminho na cidade
À procura de sonhos e ilusões.
Caminho na cidade
À procura de ser seduzido.
Percorro clandestino
Silêncios impensáveis.
Procuro autómato
Nada.
Olho infinitamente o longe
Como quem espera uma sedução.
Ser seduzido
Perseguido pelo olhar de alguém.
Saber
Que, de dentro da desconhecida multidão,
Um-alguém repara nesta sombra
Que devagar olha o longe
Sem nada ver,
Que apenas espera o milagre
De uma palavra desconhecida e inesperada,
Que o traga, de uma vez só,
Do infinitamente ausente
Para o finitamente aqui,
De um tempo-lugar,
De apenas uma carícia
Que não se implorou.
Lembro-me, então,
Daquele ano em que as mãos inconscientes
Os longos cabelos afagavam
Em longa ausência.
À espera caminho na cidade,
Sem ver, sem sentir,
Apenas ansiosamente à escuta
De um “abre-te sésamo”
Que me traga do longe para onde viajei,
Aqui ao presente de um carinho inesperado.
Como gostaria que, de repente,
Uma voz desconhecida e terna
Me parasse na rua, onde invisível caminho,
E me trouxesse do lá onde não estou
Para o cá onde ando perdido.
Como gostaria de um olhar,
Mesmo que fosse fugidio o olhar,
Me percorresse o corpo como labareda,
Que num instante se apaga.
Como seria bom
Um olhar líquido de ternura,
Surgido de um canto, de uma esquina, da multidão,
Me envolvesse num mar de carícias
Sem sentido, nem medida.
II
No entanto continuo a apreciar
O verde-próximo,
O azul-longe dos horizontes,
Como quem se lava
Da melancolia há muito sofrida.
Como engano com o meu ar distante,
O meu discurso de certezas feito,
- Dúvidas muito bem estudadas –
Apenas defesas conscientemente premeditadas,
Para bem envernizar a superfície
Quando o âmago se rasga
Com gumes de revolta.
Como engano,
Com o ar aparentemente sonhador.
Como engano
Com o calmo olhar de satisfação atingida.
Tudo.
Podem-me dizer tudo,
Que permanecerei calmo, sereno.
Talvez,
Alguém mais atento perceba uma leve sombra
Que mancha o meu olhar.
Tudo,
Pode-se-me dizer tudo
Que calmamente, como quem toma um doce licor,
Emborcarei
Apenas queria ter coragem para gritar
- Basta.
Dizer bem alto
Também tenho sentimentos,
Também sofro.
Calmamente
Continuo o meu viver quotidiano
De idas e vindas automatizadas.
Quando o que me apetece é desnudar-me
Na praça.
Mostrar o meu ser sedento de carinhos,
De mimos e de ternura.
Estar nu na praça onde cada um escreva,
Cruamente, na pele exposta,
O que de mim, sinceramente, pensa.
Que também com a minha nudez provocante
Ser gume afiado e mostrar as hipocrisias de cada um.
No entanto continuo pudicamente vestido,
A tentar e a conseguir esconder
As mágoas que me formam o ser.
Continuo com ar estudadamente distraído
A afastar os outros vestindo-me de silêncios,
Ensurdecedores silêncios.
Emudeço dia-a-dia a minha necessidade
De carícias concretizadas, não apenas sonhadas.
III
De silêncio me vesti.
De palavras me enfeitei.
De tudo quanto disse
Tudo, no fundo, calei.
Falei do céu azul,
Do verde dos montes,
Das ondas do mar,
Do vento calmo,
Das tardes de Verão.
Falei de sofrimentos sociais,
Das feridas na minha pele
Feitas no rastejar lento dos dias.
Falei de belos sol-poente,
Das frescas manhãs da aurora
Da chuva fria e calmante do Inverno,
De primaveras claras a florir.
Falei de crianças felizes nos jardins,
Das mães orgulhosas que as seguem,
Ou que com apreensão as olham
Esperando a vinda de melhores dias.
Falei de pertos e de longes,
De rios serenos ao entardecer.
De ondas revoltas acesas
Em noites espantosas de tempestades.
Falei das mulheres, flores solitárias,
Feitas prisioneiras em jarras de estimação,
Subtilmente colocadas em envidraçadas janelas
Para que, a outras mais atrevidas, sirvam de lição.
Falei longamente
Dos meus dias rotineiros,
Dos meus passos atinados
Dados em caminhos certinhos.
Falei do meu vagabundear
Pelas ruas solitárias da cidade
Da minha longa e inútil espera
Da carícia de uma voz,
Do gesto de um olhar.
Zé Onofre