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Notas à margem

Textos escritos em cadernos, em guardanapos, em folhas encontradas ao acaso, sempre a propósito, nunca de propósito. isto é "vou escrever sobre isto". Não é assim que funciono.

Textos escritos em cadernos, em guardanapos, em folhas encontradas ao acaso, sempre a propósito, nunca de propósito. isto é "vou escrever sobre isto". Não é assim que funciono.

Notas à margem

02
Mar23

Dia de hoje 89 Canto triste XV

Zé Onofre

                89

 

 023/03/01

 

Canto triste XV

 

Só uma palavra, apenas uma frase,

Só um pranto de molhada dolência,

Tudo maré vazante sem espanto.

 

Outra vez Zeca, Adriano,

Santareno e Redol,

Que nosso sonho ficou longe

E o presente de apagado farol.

 

Que venha o sol, novo amanhecer,

Mais um canto desesperado,

Por todos os filhos a haver.

 

Oh, volta Zeca, Adriano,

Santana e Redol.

A nossa utopia ficou longe,

E o futuro sem farol.

 

Choro este silêncio desesperante

Que faz da tristeza sozinha

Uma tristeza gigante.

 

Regressemos a Zeca, Adriano,

Santareno e Redol.

O futuro cada vez mais longe

E a perder-se a luz do farol.

   Zé Onofre

17
Dez22

Histórias de A a Z para aprender a ler e escrever - Livro II - Ana e a ave

Zé Onofre

Ana e a ave

ANA E A AVE.jpg

 

Da janela do seu quarto,

Ana

Olha a paisagem

Com colinas e encostas,

Vales e ribeiros,

Que certamente irão até ao mar,

Que fica para lá do horizonte,

No qual se impõe na maior montanha,

Coberta de neve

Que reflete o sol,

O luar e as estrelas.

 

Não,

A Ana não vive numa aldeia.

Da janela do seu quarto

Vê prédios, atrás de prédios,

Uns mais altos, outros mais baixos,

Presos entre ruas, ruelas,

Praças e avenidas,

Para acabar  

Num prédio todo envidraçado

Do solo de onde se ergue

Até roçar as nuvens.

 

Uma tarde,

Como noutras tantas tardes,

Ana olhava o longe.

Naquela tarde o seu olhar

Encontrou um ponto de interesse.

Era um pequeno ponto

Que se desprendeu lá longe,

Do alto do prédio envidraçado,

E se dirigia para a sua janela.

   

Agora que estava mais próximo

Identificou aquele ponto

Como uma ave.

Era uma ave para ela desconhecida

Tão diferente das avezinhas

Que conhecia dos parques e jardins da cidade.

A sua cabeça,

Ora branca, ora prateada,

Desprendia-se um arco-íris

Que coloria as suas penas.

 

Dos olhos fundos e negros

Formaram-se duas lagoas

Que refletiam a ave,

Que se aproximava velozmente,

Ignorante do perigo

Que representava o vidro da janela.

 

A ave

Chocou violentamente contra o vidro

Caiu como morta no parapeito.  

Com cuidado abriu um pouquinho a janela,

Pegou na ave

E as lagoas dos olhos de Ana

Transbordaram sobre a ave

Que recuperou do choque.

Ana bateu palmas,

A ave bateu as asas.

Ana pegou na ave com jeitinho,

Abriu-lhe a janela,

Deu-lhe um beijo na cabeça,

Deixou-a partir.

 

Agora todas as tardinhas

A ave vinha visitar a Ana.

  Zé Onofre

15
Abr22

Por aqui e por ali 94

Zé Onofre

                 94

 

996/02/23, acção de formação no Colégio S. Gonçalo. Amarante

 

Águias,

Sim voamos alto.

Em círculos

Subimos além-azul

Nas asas do vento.

Às vezes

Tão mais alto, que perdemos a presa.

 

Outras vezes

Tão rasteiros

Que não vemos a caça.

 

Que importa ser águia,

Se a presa contínua,

Serena fora do nosso alcance

 

Sim somos águias,

Mas cegas,

Perdidas entre o perto e o longe.

Zé Onofre

15
Mar22

Por aqui e por ali 69

Zé Onofre

              69

 

990/11/21

                      

         I

 

Caminho na cidade

À procura de sonhos e ilusões.

Caminho na cidade

À procura de ser seduzido.

Percorro clandestino

Silêncios impensáveis.

Procuro autómato

Nada.

Olho infinitamente o longe

Como quem espera uma sedução.

Ser seduzido

Perseguido pelo olhar de alguém.

Saber

Que, de dentro da desconhecida multidão,

Um-alguém repara nesta sombra

Que devagar olha o longe

Sem nada ver,

Que apenas espera o milagre

De uma palavra desconhecida e inesperada,

Que o traga, de uma vez só,

Do infinitamente ausente

Para o finitamente aqui,

De um tempo-lugar,

De apenas uma carícia

Que não se implorou.

Lembro-me, então,

Daquele ano em que as mãos inconscientes 

Os longos cabelos afagavam

Em longa ausência.

À espera caminho na cidade,

Sem ver, sem sentir,

Apenas ansiosamente à escuta

De um “abre-te sésamo”

Que me traga do longe para onde viajei,

Aqui ao presente de um carinho inesperado.

Como gostaria que, de repente,

Uma voz desconhecida e terna

Me parasse na rua, onde invisível caminho,

E me trouxesse do lá onde não estou

Para o cá onde ando perdido.

Como gostaria de um olhar,

Mesmo que fosse fugidio o olhar,

Me percorresse o corpo como labareda,

Que num instante se apaga.

Como seria bom

Um olhar líquido de ternura,

Surgido de um canto, de uma esquina, da multidão,

Me envolvesse num mar de carícias

Sem sentido, nem medida.

 

                      II

 

No entanto continuo a apreciar

O verde-próximo,

O azul-longe dos horizontes,

Como quem se lava

Da melancolia há muito sofrida.

Como engano com o meu ar distante,

O meu discurso de certezas feito,

- Dúvidas muito bem estudadas –

Apenas defesas conscientemente premeditadas,

Para bem envernizar a superfície

Quando o âmago se rasga

Com gumes de revolta.

Como engano,

Com o ar aparentemente sonhador.

Como engano

Com o calmo olhar de satisfação atingida.

Tudo.

Podem-me dizer tudo,

Que permanecerei calmo, sereno.

Talvez,

Alguém mais atento perceba uma leve sombra

Que mancha o meu olhar.

Tudo,

Pode-se-me dizer tudo

Que calmamente, como quem toma um doce licor,

Emborcarei

Apenas queria ter coragem para gritar

- Basta.

Dizer bem alto

Também tenho sentimentos,

Também sofro.

Calmamente

Continuo o meu viver quotidiano

De idas e vindas automatizadas.

Quando o que me apetece é desnudar-me

Na praça.

Mostrar o meu ser sedento de carinhos,

De mimos e de ternura.

Estar nu na praça onde cada um escreva,

Cruamente, na pele exposta,

O que de mim, sinceramente, pensa.

Que também com a minha nudez provocante

Ser gume afiado e mostrar as hipocrisias de cada um.

No entanto continuo pudicamente vestido,

A tentar e a conseguir esconder

As mágoas que me formam o ser.

Continuo com ar estudadamente distraído

A afastar os outros vestindo-me de silêncios,

Ensurdecedores silêncios.

Emudeço dia-a-dia a minha necessidade

De carícias concretizadas, não apenas sonhadas.

 

III

 

De silêncio me vesti.

De palavras me enfeitei.

De tudo quanto disse

Tudo, no fundo, calei.

 

Falei do céu azul,

Do verde dos montes,

Das ondas do mar,

Do vento calmo,

Das tardes de Verão.

 

Falei de sofrimentos sociais,

Das feridas na minha pele

Feitas no rastejar lento dos dias.

 

Falei de belos sol-poente,

Das frescas manhãs da aurora

Da chuva fria e calmante do Inverno,

De primaveras claras a florir.

 

Falei de crianças felizes nos jardins,

Das mães orgulhosas que as seguem,

Ou que com apreensão as olham

Esperando a vinda de melhores dias.

 

Falei de pertos e de longes,

De rios serenos ao entardecer.

De ondas revoltas acesas

Em noites espantosas de tempestades.

 

Falei das mulheres, flores solitárias,

Feitas prisioneiras em jarras de estimação,

Subtilmente colocadas em envidraçadas janelas

Para que, a outras mais atrevidas, sirvam de lição.

 

Falei longamente

Dos meus dias rotineiros,

Dos meus passos atinados

Dados em caminhos certinhos.

 

Falei do meu vagabundear

Pelas ruas solitárias da cidade

Da minha longa e inútil espera

Da carícia de uma voz,

Do gesto de um olhar.

      Zé Onofre

14
Jan22

Por aqui e por ali 42

Zé Onofre

                 42

 

988/03/21, escola de Portela, Aboim AMT

              

                 I

 

Como estranho caminho entre as pessoas.

Passo atrás de passo, procuro, autómato

Os caminhos da vida.

 

Como estranho me deito.

Como estranho me levanto.

Como estranho vivo,

Autómato, do dia-a-dia.

 

Como estranho perpasso

Pelos dias sem fim.

 

Que desperdício de sonhos.

Que desperdício de esperanças.

Que desperdício de sonhos de encantar.

 

                II

 

Olho o longe como quem lá chegou.

E não viveu o caminho p’ra lá chegar.

Olho o longe como quem lá chegou

E nada fez para o alcançar.

Olho o longe como quem lá chegou

E está desesperado por voltar.

 

               III

 

Qual nuvem ligeira, vagueio no céu

Onde o vento me modela

A seu bel-prazer.

 

Umas vezes sonho de criança feliz.

Outras, pesadelo de náufrago

Que nem uma palha tem

A que se agarrar.

  Zé Onofre

30
Ago21

Penafiel 9

Zé Onofre

             9

 15/05/978

Quando as coisas não são

O que são,

Mas o que eu sinto.

 

As flores,

As cores

Não são a Primavera.

Primavera

É o longe do medo

Nas veredas da vida.

 

As flores,

As cores

Nascem sempre

Com a alegria de viver.

E se houver amores?

Então,

É Primavera plena,

Nos caminhos longos,

Longos, da conquista do pão.

 

Longe do medo

Perto da vida

É primavera sempre.

Zé Onofre

16
Ago21

Souto 36

Zé Onofre

              36

 21/05/975

No longe e no perto de mim mesmo

Encontrarei um amanhã,

Certamente diferente,

Dos amanhãs que vivi.

 

Aqui,

No longe de hoje

Encontrarei decerto

Um amanhã perto,

Ainda que diferente

Do amanhã que foi hoje.

 

No desânimo de uma hora

Encontrarei aqui e agora,

Ou pelo amanhã fora,

Uma certeza.

Uma certeza que será boa

Se me fizer sentir,

Ao longe ou perto,

A razão de um sorriso.

 

No desespero de um minuto,

Longo ou curto,  

Encontrarei a certeza,

Que não será absoluta,

De me sentir,

Longe ou perto,

Do que procuro

E encontrarei por certo.

 

No hoje perto,

Ou no longe amanhã

Espero

Que quando não houver

Hoje longe,

Nem amanhã perto,

Encontrarei o que sou.

Quando não houver distâncias

No caminho percorrido,

Entre o longe e o perto.

 

Assim,

Com o caminho percorrido

Enfrentarei o sentido

Para poder dizer

O tempo já foi vivido,

O caminho por fazer

É para viver.

Zé Onofre