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Notas à margem

Textos escritos em cadernos, em guardanapos, em folhas encontradas ao acaso, sempre a propósito, nunca de propósito. isto é "vou escrever sobre isto". Não é assim que funciono.

Textos escritos em cadernos, em guardanapos, em folhas encontradas ao acaso, sempre a propósito, nunca de propósito. isto é "vou escrever sobre isto". Não é assim que funciono.

Notas à margem

22
Mai23

Dia de hoje 99

Zé Onofre

               99

 

023/05/22

 

Caros soldados, queridos irmãos,

Engalfinhados por riscos imaginários,

Vede o rio vermelho que vos sai das mãos.

Pensai, para quê confrontos sanguinários?

 

Não deixeis que discursos vãos

Vos façam ver nos campos contrários

Animais ferozes ou cruéis vilãos,

Que matam pelos seus instintos primários.

 

 

Vede que são pessoas tal e qual

Vós o sois com mulher e filhos.

Que estais à espera para voltar

 

A casa? Não espereis uma vitória final,

Vós já perdestes. Os vossos caudilhos,

Vencem sempre, ganhe quem ganhar.

26
Mar23

Histórias de A a Z para aprender a ler e escrever - Livro II - O tio Tiago

Zé Onofre

O tio Tiago

 

Tio Tiago

Assim era conhecido na vila.

Era tio de todos e de ninguém,

E mesmo Tiago seria o seu nome,

Mas certezas quem as tem.

 

Chegara um dia,

Vindo nem ele sabe de onde,

Ali ficara,

No vão daquela porta

Há muito já abandonada

Se tornara tio de todos.

 

Montou a sua oficina

Com todas as ferramentas.

As suas mãos fantasistas

E um canivete mágico.

Ao lado jaziam os materiais,

Pedaços de madeira,

Ranos e raízes.

 

Sentado manejava o canivete

Cortava,

Recortava,

Modelava,

Aparava

E a figura que se escondia

No interior da madeira, da raiz ou do ramo

Nas suas mãos delicadas surgia.

 

Nunca esculpia em segredo.

Havia sempre muitos pares de olhos,

Primeiro desconfiados,

Depois encantados

Com aquele homem

De cabeça branca,

Cabelos ondulantes até às costas,

Com mãos mágicas

Que de lixo da rua criava figuras deslumbrantes

A que só faltava o sopro da vida.

 

Para as crianças

O tio Tiago não era um homem.

Era o génio da madeira

Que os fazia ficar quietos,

Silenciosos,

O TIO TIAGO.jpg

Esquecidos dos pais,

Da casa,

Da escola,

Do destino que levavam,

Para verem surgir dum pedaço de madeira,

Condenado à fogueira,

Melros e estorninhos,

Pegas e gaios,

Pombas e rolas

E até patos selvagens,

Que, em vez de descerem ao rio,

Vinham poisar nas mãos do tio Tiago.

 

As aves voavam de mão em mão.

Da mão do tio Tiago,

Às mãos das crianças.

Ficava feliz a vê-las voar

Nas mãos alegres da garotada.

 

Algumas vezes

Apareciam moedas num cantinho.

Os pais das crianças sabiam

Que o tio Tiago nunca as aceitaria

Sabiam que para o tio Tiago

O que fazia não era trabalho,

Era a sua missão.

Encher de vida e alegria

Aquela porta abandonada,

A rua,

A Vila,

E as crianças que ele amava.

   Zé Onofre

11
Jan23

Rebusco 8

Zé Onofre

          8

992/10

 

Ser céu e ser vento.

Forma retorcida, revolta

Nuvem correndo veloz,

Estar só sem nada à volta.

 

Ouvir na sala, em silêncio,

A chuva que lá fora cai.

Ouvir o canto do vento

Que apressado fala e se vai.

 

Cheirar a terra molhada,

As folhas que a terra destrói.

Sentir o cheiro das castanhas

Que queimam as mãos, mas não dói.

 

Olhar as cores mil que inebriam:

Do verde austero do pinhal,

Ao cinzento fugidio das nuvens,

Sonhar regressos ao pecado original.

  Zé Onofre

24
Dez22

Dia de hoje 83

Zé Onofre

               83

 

022/12/19

 

Natal,

Orar ao Sol

Que regresse

Para nos tirar do Hades

O reino das trevas

Onde caímos no equinócio do Outono.

 

Natal,

A memória de um novo Sol

Que nasceu num curral escuro de Belém

Para dar uma nova Luz ao Mundo.

 

Natal,

Um novo olhar sobre a vida,

Uma nova visão dos homens,

Todos nascidos do ventre escuro da mãe,

Nus,

Sem coroas, nem mordomias,

Sem riquezas,

Todos nascidos de mãos nuas e puras.

 

Memória do nascimento de um menino,

Não por ter nascido um menino,

Igual a todos os outros meninos

E como outros tantos

Nascidos nas margens da vida,

Na margem da humanidade.

 

Natal, celebração de um Menino

No dia do seu Nascimento.

Porque esse Menino

Além de passar pelas fases de crescimento

- Criança e adolescente,

Jovem e adulto –

Cresceu também em Sabedoria

E Inteligência.

 

Aquele Menino, nascido num curral,

À luz das estrelas,

Entre animais e pastores,

No seu trabalho do dia-a-dia,

Na frequência da sua Igreja

Usando o saber que lhe transmitiam,

Usando a sua inteligência

Para ver a realidade

Confrontando-a com os ensinamentos.

 

Havia uma diferença abismal

Entre a vida e o ensinamento.

A sua aguçada inteligência

Não aceitava a distância

Que ia da palavra ao acto.

 

Principiou por confrontar

Os Mestres da sua igreja.

Denunciar,

Não a lei,

Mas a sua Manipulação

Pela hierarquia sacerdotal,

Pela hierarquia política,

Pela elite económica.

 

Há quem celebre o Natal

Como apenas o Nascimento de um menino.

É o Natal da minha infância.

Apanhar musgo,

Arbustos,

Para fazer o presépio na Igreja.

Era a alegria da brincadeira no Largo,

O entrar na Igreja para a Missa do Galo,

Ver o presépio iluminar-se

Ao som das badaladas da meia-noite

E de “o Gloria in excelsis Deo”.

Tudo isto depois da Ceia de Natal em família.

 

Como lembrar todos os nascimentos,

De tantas crianças

Que, como aquele menino,

Nasceram desamparados e abandonados por todos.

 

Como falar da miséria

Que fica para lá das janelas coloridas

Que expõem ao mundo o excesso

Enquanto, deitada em lençóis de neve,

Uma menina morre aquecida

Por fósforos não vendidos.

 

Como revolta

Contra aqueles que transformaram o Natal

Num Centro Comercial,

Que relegaram outra vez para um canto escuro

O aniversariante,

Substituindo-o por um velho barrigudo,

Barbas e cabelos brancos,

Vestido de vermelho,

O homem da Coca-cola.

 

Como apenas tendo sentido

Comemorar o Natal daquele menino,

Não pelo fato de ter nascido,

Mas pelo que fez

Até ser crucificado como um criminoso

Porque ousou enfrentar

Os poderes instituídos

Que manipulavam a lei em seu proveito.

 

Espero no próximo 24 de Dezembro

Comemorar com saudade o Natal da minha infância,

Sabendo, contudo, que o Natal

É muito mais que isso.

Zé Onofre

12
Abr22

Por aqui e por ali 91

Zé Onofre

              91

 

Livração sem data e sem lugar. O tempo e o lugar é estarmos com os amigos onde eles estiverem

 

Amigo Alexandrino

 

A ver se sossego, o desassossego que me toma ao passar frente à casa dos teus pais.

A ver se a saudade dos tempos, em que o tempo era feito com as nossas mãos, não se esvai pela névoa da distância que o tempo aumenta.

A ver se o fogo sagrado se não apaga de vez e continua em chama no recôndito dos dias que passam.

A ver se resistimos, ainda e sempre, à monotonia de um tempo, este, que pretende esmagar o sonho, a magia e as noites de luar.

Principalmente para dar um abraço sentido ao amigo ausente, sempre presente.

Para te enviar o que inopinadamente li numa noite de recordações e emoções fortes.

Não fora a ocasião, que foi, e nunca me atreveria a ler o que li e nunca prometeria o que prometi.

Cada linha que escrevo tem o sentido de mim mesmo. Não é muito do meu agrado andar a expor-me em público. Mas o prometido é devido.

Aí vão. Usa-as apenas para ti, como saudade de um tempo que esperamos reviver um dia.

Zé Onofre

996/01/05, Amarante, confeitaria Mário

 Zé Onofre

06
Abr22

Por aqui e por ali 86

Zé Onofre

                  86

 

995/03/15

 

Imagens e sons de amor.

Palavras

Que falam de carinho, de amizade,

Da alegria das coisas simples,

Da alegria

De dar vida à nossa vida.

 

Palavras

Que falam do desperdício,

Que são os sonhos perdidos

No supérfluo.

 

Gestos simples,

Canções simples,

Palavras simples,

Dar vida à vida

Com a nossa vida.

 

Construir o sonho

Com mãos vazias.

Tão simples.

Tão belo.

  Zé Onofre

20
Mar22

Por aqui e por ali 73

Zé Onofre

              73

 

991/04/24, Porto, Hotel Boega, Ação de Formação Ensinar é investigar

 

Toda a iniciação pressupõe os seus feiticeiros.

Os professores são os feiticeiros da escola.

 

Conhecer é dominar.

Conhecer é refletir

Sobre as coisas e as ações.

Conhecer é ir ao porquê das coisas.

 

Somos feiticeiros de uma nova religião.

Só faltam as máscaras.

Andamos à procura delas.

 

Tantas vezes se repete naturalmente.

Naturalmente as crianças falam …

 

O ritual é importante.

Na missa também.

Viva a ortodoxia.

 

Silêncio.

Som magnífico

Que as palavras prostituem

Com cores de pesadelo.

Silêncio,

Digo às paredes que me cercam

Feitas de gritos de pesadelos.

Silêncio.

Quero o silêncio

Da multidão em marcha

À procura do futuro.

 

Há gritos incontidos

No fundo de nós mesmos;

Há choros percorridos

Nas palmas das mãos;

Há raiva incontida

Nas palmas das mãos

Há amor amortalhado

Nas palmas das mãos.

O silêncio em redor

Fecha-nos em grades,

Paredes de Solidão

 

Caminha.

Procura.

Encontrarás os sons, os gritos

Da alegria da vida.

Caminha.

Procura.

Encontrarás a verdade

Da alegria da vida.

Caminha.

Procura.

Acharás sons de alegria nos caminhos

Que trilhas.

Caminha.

Procura.

A verdade

Ainda ninguém a viu.

  Zé Onofre

21
Dez21

Por aqui e por ali 26

Zé Onofre

               26  

 

985/03/28, Marco, acção de formação sobre bibliotecas

 

         I

 

Ah,

Se o mundo

Fosse apenas a solidão.

Ah,

Se fosse apenas.

 

         II

 

Palavras,

Pedras nuas

À espera de carinho.

 

Palavras,

Arestas,

Gumes,

Sequiosas de sangue

Que as reguem.

 

Palavras,

Mãos nuas estendidas

À espera da esmola,

Do bulício …

Ou do silêncio apenas.

 

                                        III

 

Aqui ou ali, ontem ou amanhã, ou mesmo hoje Ivo estará sempre só.

E não só Ivo, como todos os Ivo deste mundo. Mesmo aqueles que não foram à guerra, mas são geradores de guerras.

Mesmo aqueles que medindo a distância em metros, apenas pensam em alcances de mísseis.

Mesmo aqueles que não sendo mutilados pensam o mundo sem onténs, ou amanhãs, mas no tempo eterno de uma explosão de neutrões.

Todos se sentirão sós por não se terem interrogado, antes de agir – que direito tenho eu de premir o gatilho, ou o botão? – e, mais ainda, quando nem um hipotético pastor houver para lhes perguntarem – quem são vocês?

E os outros, nós sós estamos por não fazermos a pergunta agora, enquanto há tempo e não eternidade. 

     Zé Onofre

08
Dez21

Por aqui e por ali 14

Zé Onofre

                 13

 

982/ 03/__, Vila Caiz, AMT

 

Queria falar em mil coisas

Que ficaram por dizer.

Queria pensar em mil sonhos

Que ficaram por sonhar.

Queria falar talvez

Das saudades do que não fiz,

Das esperanças que não nasceram,

Dos sonhos que murcharam.

Queria falar de tudo

Que não foi e murchou

Nas minhas mãos secas.

Queria falar,

Queria falar,

Queria falar …

   Zé Onofre