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Notas à margem

Textos escritos em cadernos, em guardanapos, em folhas encontradas ao acaso, sempre a propósito, nunca de propósito. isto é "vou escrever sobre isto". Não é assim que funciono.

Textos escritos em cadernos, em guardanapos, em folhas encontradas ao acaso, sempre a propósito, nunca de propósito. isto é "vou escrever sobre isto". Não é assim que funciono.

Notas à margem

13
Dez22

Dia de hoje 81

Zé Onofre

              81

 

022/12/13

 

Nasceu,

Dizem,

Numa manjedoura,

Há dois mil anos,

Mais ano menos ano,

Uma criança.

 

Nasceu,

Dizem,

Na manjedoura de um curral

Depois de se fecharem todas as portas,

Para um casal cansado de longa viagem,

Cuja mulher

Se apresentava nitidamente grávida

Nos últimos dias.

 

Nasceu,

Dizem,

No curral

Onde dois dóceis animais,

Uma vaca pachorrenta

E um manso burro

Se aproximaram da manjedoura

E o cobriram de ternura.

 

Nasceu,

Dizem,

Ao som de coros universais,

De cantos de pastores

Que se recolhiam.

De joelhos caíram

Perante o milagre

Da vida.

 

Cresceu,

Dizem,

Em humanidade,

Inteligência

E sabedoria.

 

Adulto,

Dizem,

Que percorreu todos os caminhos.

Que andou por desertos

Por casais e aldeias,

Por vilas e cidades

Seguido por pescadores,

Cobradores de impostos,

Prostitutas e leprosos

E outros marginalizados.

 

Viu,

Dizem,

Tudo o que havia para ver.

Opulência.

Riqueza.

Miséria.

Opróbrio.

Violência.

 

Não gostou,

Dizem,

Do que viu.

Então,

Seguido pelos seus amigos,

Partiu a denunciar os desvios

E manipulação da Lei

Que os sumo-sacerdotes,

Os poderes políticos,

Os poderes económicos

Faziam em seu proveito.

 

Aquela criança,

Dizem,

Nascida em palhas

Bafejada por dois dóceis animais,

Um dia quis mudar o mundo

Com palavras

Ilustradas por actos.

 

Crucificaram-no na cruz,

Dizem,

Como um vulgar criminoso.

É assim

Que os poderes instituídos

Tratam quem ousa

Atravessar-se no seu caminho.

 

Hoje,

Passados dois mil anos,

Mais ano, menos ano,

Lembramos como grande

Aquele dia.

O dia em que um casal

Apenas encontrou abrigo num curral.

Onde uma criança

Acabou por nascer nas palhas

De uma manjedoura.

 

Lembramos

Aquele dia

Desejando

Um novo mundo, melhor,

O fim da Guerra,

O fim da Fome,

Um mundo de Paz,

Um mundo de Liberdade,

Um mundo de Igualdade,

Um mundo de Fraternidade.

 

Talvez cheguemos lá um dia,
Talvez.

Quando houver menos Cristãos
E mais seguidores de Cristo.


Talvez cheguemos lá um dia,
Talvez.
Quando toda a Humanidade
Acreditar
Que nada é de ninguém
E que todos têm direito a tudo.

Talvez cheguemos lá um dia,
Talvez.
Chegaremos lá?
Como chegaremos lá?
Não sei.


Talvez cheguemos lá um dia,
Talvez.

Zé Onofre

11
Mai22

Por aqui e por ali 120

Zé Onofre

120

 

2001/06/25, igreja de S. Gonçalo, Amarante

 

Sob estas arcadas de pedra,

Onde aparentemente o tempo parou,

Respiro-me som de terra

Em que o tempo me tornou.

 

Entre estes solitários pilares,

Aparentemente aos céus erguidos,

Imploro-te, ó nada, para agasalhares

Os sonhos um a um sucumbidos.

 

Vem lá do alto onde subiste

– Cair como um punhal aberto –

Sobre este peito, nem alegre, nem triste,

 

Matar a ilusão que ainda persiste

Manter o inútil sonho desperto,

Quando o sol já sequer existe.

  Zé Onofre

04
Abr22

Por aqui e por ali 84

Zé Onofre

                    84

 

 995/02/20

 

Só,

Ou em revoadas,

Ave desaninhada,

À procura …

 

O ninho onde está?

 

E importa o ninho

Quando o caminho é belo?

 

E importará o caminho,

Se é agreste,

E não vale a pena?

 

Só,

Ou em revoadas,

Ave desgarrada

À procura 

Do tudo,

Ou do nada.

Somente à procura.

 Zé Onofre

 

 

 

Somente à procura …

15
Mar22

Por aqui e por ali 69

Zé Onofre

              69

 

990/11/21

                      

         I

 

Caminho na cidade

À procura de sonhos e ilusões.

Caminho na cidade

À procura de ser seduzido.

Percorro clandestino

Silêncios impensáveis.

Procuro autómato

Nada.

Olho infinitamente o longe

Como quem espera uma sedução.

Ser seduzido

Perseguido pelo olhar de alguém.

Saber

Que, de dentro da desconhecida multidão,

Um-alguém repara nesta sombra

Que devagar olha o longe

Sem nada ver,

Que apenas espera o milagre

De uma palavra desconhecida e inesperada,

Que o traga, de uma vez só,

Do infinitamente ausente

Para o finitamente aqui,

De um tempo-lugar,

De apenas uma carícia

Que não se implorou.

Lembro-me, então,

Daquele ano em que as mãos inconscientes 

Os longos cabelos afagavam

Em longa ausência.

À espera caminho na cidade,

Sem ver, sem sentir,

Apenas ansiosamente à escuta

De um “abre-te sésamo”

Que me traga do longe para onde viajei,

Aqui ao presente de um carinho inesperado.

Como gostaria que, de repente,

Uma voz desconhecida e terna

Me parasse na rua, onde invisível caminho,

E me trouxesse do lá onde não estou

Para o cá onde ando perdido.

Como gostaria de um olhar,

Mesmo que fosse fugidio o olhar,

Me percorresse o corpo como labareda,

Que num instante se apaga.

Como seria bom

Um olhar líquido de ternura,

Surgido de um canto, de uma esquina, da multidão,

Me envolvesse num mar de carícias

Sem sentido, nem medida.

 

                      II

 

No entanto continuo a apreciar

O verde-próximo,

O azul-longe dos horizontes,

Como quem se lava

Da melancolia há muito sofrida.

Como engano com o meu ar distante,

O meu discurso de certezas feito,

- Dúvidas muito bem estudadas –

Apenas defesas conscientemente premeditadas,

Para bem envernizar a superfície

Quando o âmago se rasga

Com gumes de revolta.

Como engano,

Com o ar aparentemente sonhador.

Como engano

Com o calmo olhar de satisfação atingida.

Tudo.

Podem-me dizer tudo,

Que permanecerei calmo, sereno.

Talvez,

Alguém mais atento perceba uma leve sombra

Que mancha o meu olhar.

Tudo,

Pode-se-me dizer tudo

Que calmamente, como quem toma um doce licor,

Emborcarei

Apenas queria ter coragem para gritar

- Basta.

Dizer bem alto

Também tenho sentimentos,

Também sofro.

Calmamente

Continuo o meu viver quotidiano

De idas e vindas automatizadas.

Quando o que me apetece é desnudar-me

Na praça.

Mostrar o meu ser sedento de carinhos,

De mimos e de ternura.

Estar nu na praça onde cada um escreva,

Cruamente, na pele exposta,

O que de mim, sinceramente, pensa.

Que também com a minha nudez provocante

Ser gume afiado e mostrar as hipocrisias de cada um.

No entanto continuo pudicamente vestido,

A tentar e a conseguir esconder

As mágoas que me formam o ser.

Continuo com ar estudadamente distraído

A afastar os outros vestindo-me de silêncios,

Ensurdecedores silêncios.

Emudeço dia-a-dia a minha necessidade

De carícias concretizadas, não apenas sonhadas.

 

III

 

De silêncio me vesti.

De palavras me enfeitei.

De tudo quanto disse

Tudo, no fundo, calei.

 

Falei do céu azul,

Do verde dos montes,

Das ondas do mar,

Do vento calmo,

Das tardes de Verão.

 

Falei de sofrimentos sociais,

Das feridas na minha pele

Feitas no rastejar lento dos dias.

 

Falei de belos sol-poente,

Das frescas manhãs da aurora

Da chuva fria e calmante do Inverno,

De primaveras claras a florir.

 

Falei de crianças felizes nos jardins,

Das mães orgulhosas que as seguem,

Ou que com apreensão as olham

Esperando a vinda de melhores dias.

 

Falei de pertos e de longes,

De rios serenos ao entardecer.

De ondas revoltas acesas

Em noites espantosas de tempestades.

 

Falei das mulheres, flores solitárias,

Feitas prisioneiras em jarras de estimação,

Subtilmente colocadas em envidraçadas janelas

Para que, a outras mais atrevidas, sirvam de lição.

 

Falei longamente

Dos meus dias rotineiros,

Dos meus passos atinados

Dados em caminhos certinhos.

 

Falei do meu vagabundear

Pelas ruas solitárias da cidade

Da minha longa e inútil espera

Da carícia de uma voz,

Do gesto de um olhar.

      Zé Onofre

28
Out21

Penafiel 72

Zé Onofre

                     72

 

___/___/978

 

Quando pode acontecer

A uma petiza,

Nascida para a vida,

A fome,

Ou o frio

Então

É o lixo!

 

Esta é como uma flor.

Se lhe tocam as abelhas

E o pólen cai

Germina-o sem medo

Do tempo.

Se as moscas,

Com as suas patas pernas viscosas,

A roubam,

Cedo aborta,

De corola desfolhada,

Outras flores

Nascidas para tudo

Ou para nada.

 

Que tempo

Que lança fora,

Na lixeira,

O viço da vida.

 

Que lixeira a de aqueles,

Que se gabam de serem defensores dos bons costumes

Lhe exploram tudo.

Ou serão os pais,

Que trabalham,

Que deixa atirar as suas flores

À lixeira?

  Zé Onofre

03
Out21

Penafiel 52-53

Zé Onofre

                 52

 

09/12/977

 

Não sou poeta

Do nada.

Não sou poeta

Do tudo.

Sou apenas cronista

Do tempo que passa.

Zé Onofre

                 53

 

10/12/977

 

É longo o tempo?

É curto o espaço?

É apenas vento

No intervalo

De um espaço.

 Zé Onofre

08
Ago21

Souto 26

Zé Onofre

           26

 21/02/975

                    I

Os dias não são eternos,

Mas são longos os minutos.

Nós é que fazemos o tempo.

O tempo encurta-se,

Alonga-se

À cadência dos anseios,

Dos desejos,

Das ilusões desiludidas.

                     II

Os dias não são eternos,

Mas são longos os minutos.

Longos, longos, longos.

Num minuto tudo se decide,

O viver e morrer

O tudo e o nada.

Tudo decisões de um minuto.

                   III

Os dias não são eternos,

Mas os minutos são longos.

Quanto mais longos,

Mais curtos os dias,

Menos eternos

                   IV

A vida mede-se

Pelo tempo vivido

Entre um minuto e outro minuto.

Entre esses momentos

Apagam-se os dias,

Anulam-se os anos,

Tudo se anula.

                 V                                                  

De repente acordamos,

O minuto arredonda-se

Em menos de um instante.

Os dias não são eternos,

Mas os minutos são longos.

         Zé Onofre