Histórias de A a Z para aprender a ler e escrever - Livro II - O ouvido do rei
O ouvido do rei
Conta o povo, ou a lenda,
Ou talvez o povo tenha feito a lenda.
Agora o povo diz que há uma lenda
Mais velha que os avós, dos avós dos seus avós.
No velho Castelo, lá no alto do Outeiro,
Viveu antigamente um rei igual a todos os reis
De todos os tempos e de todas as lendas.
Caçava javalis, veados e ursos nas suas matas.
Que quando não caçava, guerreava outros reis.
Nos intervalos das caçadas e das guerras
Arranjava tempo para atender pessoalmente
Os seus súbditos. Da mais alta nobreza e clero
Ao mais baixo dos pés descalços,
Justiça aqui lhe seja feita.
Numa das audições ouviu dois senhores,
Da mais alta nobreza do seu reino.
Uma questão de caça. D. Beltrão acusava
- Beltrano de ter caçado o melhor veado
Que bicho como aquele, só aquele.
- Beltrano ia replicar
Porem, foi interrompido pelo rei.
- Beltrão, entre nós que ninguém ouve,
Não terá caído, um veado igual ao seu
Da Mata de D. Beltrano, ao seu caldeirão?
- Beltrão ficou corado de vergonha.
- Beltrano ficou vermelho de fúria.
Num outro dia atendeu dois lavradores
Desavindos à quebra de um acordo feito,
Em nome dos seus filhos, ainda crianças.
O sr. José da Póvoa prometeu o seu filho
Alberto, à Anita filha do sr. António da Horta.
Ao fazerem tal acordo difícil seria não dar asneira.
É verdade que a Anita e o Alberto gostam-se,
Como amigos. Se não o fossem seria de estranhar.
Brincaram às casinhas desde pequeninos.
Agora para casar Anita ama o Manel da Eira.
O que acordaram ficou lá no passado
E deixem os dois pombinhos casarem-se.
Já longe do Castelo, na ladeira do Outeiro
Dizia o sr. António ao compadre José.
Antes de nos teres levado ao sr. rei,
Falávamos e entre nós resolvíamos o caso.
Ó compadre, sabes que não sou queixinhas.
Diz-me então compadre, como o sabia o rei?
Estes casos do rei saber tudo sobre todos,
Pôs o reino numa maldita confusão.
Cada vizinho acusava o outro
De o rei lhe pagar para ser espião.
O rei cansado de ouvir tanta desavença,
Decidiu acabar com os mal-entendidos
Antes que o povo armasse uma explosão.
Para isso tinha que desvendar o seu segredo,
O que não lhe agradava de modo algum,
Todavia, pior seria sangue a correr pelo chão.
Convocou para o seu Castelo do Outeiro
Todo o Povo para acalmar a sua Nação.
Da varanda arengou no estilo do costume.
Senhores nobres, bispos e padres,
Abades, abadessas, freiras e frades,
Lavradores, pescadores, tecelões e tecedeiras.
Meu Povo.
Quando já todos mostravam impaciência,
Convoquei-vos hoje aqui para vos garantir
Que no reino não há, não houve nem haverá,
Espião ou espia, coscuvilheiro ou coscuvilheira
Que me façam chegar aos ouvidos a vossa vida.
Meu povo, há aqui no alto do Outeiro,
Junto ao Castelo, um penedo orelhudo,
A que resolvi chamar o ouvido do rei,
Porque encostando lá o meu
Permite-me ouvir tudo que se passa
Perto do Outeiro, ou nos longes do reino.
Um oh, um só oh de incredulidade subiu
Da multidão reunida até ao rei.
Não levando a mal tamanha desconfiança
Disse com um sorriso. Com certeza
Não duvidareis de uma inocente criança.
Tu, que ris incrédulo, vai até ao orelhudo,
Que desço para ir lá ter contigo, vamos.
Encontraram-se junto ao Penedo.
Encosta o teu ouvido ao Orelhudo.
O rapazinho, ainda desconfiado, assim fez.
Primeiro começou a sorrir, a rir baixinho
Por fim desatou à gargalhada.
O povo quis saber que diabo se passava.
Ouço um padre a rezar a missa em latim.
Agora o Romão remendão canta e bate a sola.
Longe, um lavrador chama o preto e o amarelo.
Podeis acreditar aqui o penedo do Outeiro
É o verdadeiro ouvido do senhor rei.
O castelo já ruiu,
O rei do Outeiro morreu,
O ouvido do rei ainda está lá.
Quem acreditar, acredita,
Quem não acreditar
Vá lá escutar.