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Notas à margem

Textos escritos em cadernos, em guardanapos, em folhas encontradas ao acaso, sempre a propósito, nunca de propósito. isto é "vou escrever sobre isto". Não é assim que funciono.

Textos escritos em cadernos, em guardanapos, em folhas encontradas ao acaso, sempre a propósito, nunca de propósito. isto é "vou escrever sobre isto". Não é assim que funciono.

Notas à margem

13
Dez22

Comentário 302

Zé Onofre

                  312  

 

022/12/13

 

Sobre Banalidades em  desabafos (sapo.pt), Romi, em 022/11/21

 

Andamos numa roda-viva,

Cheios de pressa como a lebre,

Vindos de algures,

Indo para nenhures,

Procurando não sabemos o quê,

Nem para que fim.

 

Autênticos maratonistas,

Carregando tralhas

Que nos são importantes,

Nunca nos interrogando

O por quê da sua utilidade.

 

Parecemos esquilos

A acumular avelãs.

Vivemos para um futuro

Enquanto esquecemos o presente,

Que é o que temos,

Adiando-o

Para um futuro incerto.

 

Regressamos de nenhures

Voltamos a algures.

Entramos numa casa,

Atirámo-nos exaustos

Para um repouso

Refazer forças para no dia seguinte

Repetir todos os outros dias

Zé Onofre

17
Abr22

Por aqui e por ali 96

Zé Onofre

                 96

 

996/05/12, visita a uma amiga instalada no asilo, Amarante

 

Aqui estão parados,

Simulando que vivem.

Aqui estão a viver um tempo

Que não existe,

A gastar um sopro 

Que está suspenso.

Aqui estão

Envoltos num passado,

Num presente suspenso

Que não terá futuro.

Aqui estão desertos de sonhos,

Suspensos do tempo,

Ausência do hoje,

Sem possíveis amanhãs.

  Zé Onofre

14
Out21

Penafiel 63

Zé Onofre

                  63

 

03/03/978

 

Solidão

É ter o direito de dizer a nossa palavra

E calá-la.

É ter espaço para a gritar

E não o aproveitar.

É ter pernas

E não querer andar.

É ter olhar

E não querer ver.

 

Solidão

É o diz-se, diz-se

Das mesas do café.

É o murmúrio

Nos recantos dos corredores.

É ter a luz acesa

E apaga-la.

 

Solidão

É ter o dever de falar

E calar.

É ter o dever de ocupar o espaço

E abandoná-lo.

É ter o dever de andar

E amarrar as pernas.

É o dever de olhar em frente

E baixar os olhos.

 

Solidão

É querer estar só.

São estas paredes cheias

Do silêncio das nossas vozes.

É vazio gritado

De murmúrios.

É o sussurro bichanado

Ao ouvido do teu amigo.

 

Solidão

É ter o dever de estar presente

E fugir.

É direito de estar

E não o usar.

    Zé Onofre

 

 

08
Out21

Penafiel 57

Zé Onofre

                 57

 

11/01/978

 

Ó criança

Perdida

Nos meandros de teias

Em que te metemos.

 

És

Lampejo gritado

Nos sons da noite.

 

És relâmpago

Deslumbrante

De sons em cântico.

 

És

Presente

Espraiado

Nas margens do futuro.

 

Canto-te

Cor florescida

No chão

Semeado de pedras.

 

Canto-te

Som sofrido

No pântano

Semeado de medo.

 

Canto-te

Bem alto

Alegria que te quero

Das minhas mãos.

 

Elevamos-te

Bem alto

Alegria das nossas mãos.

  Zé Onofre               

13
Ago21

Souto 32

Zé Onofre

32

 29/04/975

 Os dias cinzentos e chuvosos

Ficaram ternos e saudosos,

Melancólicos.

As recordações entram de mansinho.

De repente os olhos

Enchem-se de vida, de brilhos

Que iluminam o presente.

 

Aqui, sentado a esta janela,

Ténue fronteira

Entre o ontem e o hoje.

Escorre dela os belos dias de criança.

Dias sempre azuis,

Nem que o céu cinzento negro,

Despejasse águas a cântaros,

Ou enchesse a vida

Com raios e trovões,

Eram sempre azuis.

 

Eram azuis quando rolávamos

Verdes nos campos.

Eram azuis, quando rindo,

Tentávamos um beijo do nosso amor.

Eram azuis

As caras dos amigos

Os brinquedos que inventávamos.

 

Eram azuis

As tardes longas de sol

Era azul,

O sol que se derramava em nós.

Eram azuis

As águas corredias nos regos e riachos.

Era azul

O ralho da mãe

- Se adoeceres

Nem um copo de água te levo à cama. –

 

Azul,

Aquela nossa vida

Saltar de rego em rego,

Construir enormes barragens,

Lagoas como mares,

Pontes, as maiores do mundo

(Três pedras,

Varas caídas da poda

E o cimento, lama)

Obra-prima da engenharia.

Azul

Era o tempo, em que enleados,

Admirávamos a obra feita.

 

Azuis

Eram os sorrisos felizes

Estampados no rosto,

E desfaziam em pó

Os ralhos ternos da mãe.

 

Azul,

Embora esbatido,

É esta melancolia

De espreitar a infância

Pela frincha do tempo.

Azul,

Embora esbatido,

É espreitar os campos,

Ainda cheios de vida,

Agora abandonados

À incúria dos tempos.

 

Vieram os anos,

Olho para dentro de mim

Onde ontem,

Vejo azuis ossos encharcados.

Hoje,

Apenas ossos pesados.

Vieram os anos,

Olho para dentro de mim.

Onde ontem,

Há sombras azuis de amores,

Olhos azuis que eram azuis,

E azuis continuam,

Apesar das lágrimas

Que hoje

Teimam em diluí-los.

 

Nesse azul claro

Uma nova onda nascerá

Sem angústia,

Sem desespero da loucura

Da vã procura.

Nas ruas da solidão

Estará o azul

À minha espera.

   Zé Onofre