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Notas à margem

Textos escritos em cadernos, em guardanapos, em folhas encontradas ao acaso, sempre a propósito, nunca de propósito. isto é "vou escrever sobre isto". Não é assim que funciono.

Textos escritos em cadernos, em guardanapos, em folhas encontradas ao acaso, sempre a propósito, nunca de propósito. isto é "vou escrever sobre isto". Não é assim que funciono.

Notas à margem

05
Dez22

Dia de hoje 79

Zé Onofre

               79

 

Carta do Menino Jesus às Crianças  

 

022/12/05

 

Queridas crianças, minhas amigas

Este ano resolvi endereçar-vos uma carta, que há muitos anos trago no pensamento.

Não o fiz até agora porque o tempo, e dizem que tenho todo o tempo do mundo, tem sido pouco para os meus afazeres.

Não o fiz até agora porque as circunstâncias têm sido adversas a este meu desígnio. Bem sei que dizem que posso controlar as circunstâncias, porém isso seria um abuso de poder.

Creio, contudo, que chegou o momento de falar.

O tempo tornou-se mais livre para mim nestes últimos sessenta anos.

Desde meados do século passado que a maior parte de vós deixou de me pedir prendas.

Desde esse tempo tendes-vos dirigido a um senhor anafado, de cabelos e barbas brancas acolhedoras que vindo lá do norte frio vos vai enchendo com mais do que precisais.

Fato, esse, que me tem deixado livre para refletir sobre os pedidos simples que me faziam os vossos avós e ainda alguns dos vossos pais.

Alguns de vós, menos contaminados pela ambição de quererem coisas deste mundo e do outro, continuam simples como os seus avós, bisavós, trisavós e outros antepassados.

É com alegria que recebo esses pedidos pois vêm de crianças simples que ainda não se renderam ao consumismo do Homem do Barrete Vermelho.

É com tristeza que recebo esses pedidos pois são quase uma cópia dos pedidos dos seus antepassados. Simples, contudo plenos de tristezas e angústias.

Ao ler esses pedidos tão singelos vejo-me no tempo em que, há pouco mais ou menos dois mil anos, vivi entre vós e que de lá até hoje pouco mudou nas relações entre os homens.

Não é que alguns não tenham tentado.

Em Itália, um jovem comerciante de panos de luxo, que muito o enriqueciam, viu que nos caminhos que o levavam de feira em feira, e nas cidades onde a feira se fazia, muitos poucos se vestiam, calçavam e comiam. Entretanto a maioria caminhava descalça, esfomeada e coberta de trapos.

Decidiu então abandonar toda a sua riqueza e falar de mim às gentes famintas de tudo, até do calor do meu abraço.

Os encarregados de ensinarem o que eu lhes ensinei vestiam-se luxuosamente, viviam em palácios ricos, longe dos homens, a que chamavam o seu rebanho. Não queriam cheirar às suas ovelhas.

Foi então que decidiu representar o meu nascimento.

Escolheu um curral de ovelhas, onde nasci nas suas manjedouras, tendo palha como colchão.

Para minha guarda de honra colocou dois mansos animais de trabalho, um burro e uma vaca.

Como luz deu-me a luz das estrelas.

Como visitantes deu-me pastores que vinham com as suas ovelhas ajoelharem-se em frente à manjedoura.

Mais tarde chegaram os sábios que acreditavam que algo era preciso para mudar o mundo, nem que fosse um indigente nascido à luz das estrelas, num curral de ovelhas.

Por fim pôs um coro cujas vozes ecoavam nos céus e em todos os cantos da Terra – Glória aos Homens de Boa Vontade.

Nem o despojamento das suas riquezas.

Nem a minha mensagem representada em figuras, que não enganavam como as palavras dos altos sacerdotes, mudou o estado do mundo.

Poucos homens continuaram a viver à custa do suor de muitos.

Os que falavam que era tempo de todos terem direito a uma vida digna continuaram a ser perseguidos pelos Herodes deste Mundo e de falarem em nome do demónio pelos Sumos-sacerdotes.

Como o Homem de Assis houve poetas, visionários, humanistas que queriam que ninguém tivesse mais do que uma capa, porque outras que possuísse tinham sido tiradas aos seus irmãos.

Era isto que os vossos antepassados humildemente me pediam como prenda de Natal.

Não estava, e não está, nas minhas mãos satisfazer este pedido.

O que eu posso fazer é continuar a dizer que para um Homem viver com dignidade lhe chega o necessário, que o extraordinário já não lhes pertence. Apenas os posso tentar convencer, obrigá-los não.

Esse pedido que me fazem há mais ou menos dois mil anos está nas vossas mãos.

Nas mãos dos vossos pais que não explorem, nem se deixem explorar.

Principalmente nas vossas mãos, ainda inocentes, mas que o velhinho das barbas brancas e gorro vermelho as vai tornando, cada vez mais, em mãos muito pequenas para o que desejais, e é infinitamente mais do que precisais.

27
Nov22

Dia de hoje 76 - Natal

Zé Onofre

               76

 

Natal

 

022/11/20

 

O Natal está a chegar.

 

Este ano prometo que apenas falarei da beleza

Que irradia do Natal na gruta de Belém.

Prometo que, por maior que seja a tentação

Para falar do mar imenso e bravo da pobreza,

Causada pela ganância do lucro, da acumulação,    

Apenas falarei da alegria que o Natal tem. 

 

Este ano prometo que apenas falarei da beleza

Que irradia do Natal na gruta de Belém.

Prometo que, por maior que seja a tentação

Para falar dos rios de água que correm pela mesa

Dos que à volta dela se sentam e não têm pão   

Apenas falarei da alegria que o Natal tem. 

 

Este ano prometo que apenas falarei da beleza

Que irradia do Natal na gruta de Belém.

Prometo que, por maior que seja a tentação

Para falar das crianças que sofrem a dureza

De viverem sem telhado e a incerteza de um chão,

Apenas falarei da alegria que o Natal tem. 

 

Este ano prometo que apenas falarei da beleza

Do “canto dos anjos” na gruta de Belém.

Prometo que, por maior que seja a tentação

Para falar das guerras geridas pela avareza

Dos que só vivem tendo tudo na sua mão,   

Apenas falarei da alegria que o Natal tem. 

 

Este ano prometo que apenas falarei da beleza

Dos pastores ajoelhados na gruta de Belém.

Prometo que, por maior que seja a tentação

Para falar da velhice rejeitada com crueza, 

Abandonada em casas, ou lares de ostentação,

Apenas falarei da alegria que o Natal tem. 

 

Este ano prometo que apenas falarei da beleza

Que irradia dos Magos na gruta de Belém.

Prometo que, por maior que seja a tentação

Para falar da ensanguentada riqueza

Que estropia, fere, mata escondendo a mão, 

Apenas falarei da alegria que o Natal tem. 

 

Este ano prometo que apenas falarei da beleza

Que irradia da Estrela sobre a gruta de Belém.

Prometo que, por maior que seja a tentação

Para falar dos que mergulhados na tristeza

E não sabem que o seu suor é o ouro do patrão,    

Apenas falarei da alegria que o Natal tem. 

 

Este ano prometo que apenas falarei da beleza

Que irradia do Natal na gruta de Belém.

Prometo que, por maior que seja a tentação

Para falar dos males feitos à Natureza

Por quem se julga dono de toda a criação,

Apenas falarei da alegria que o Natal tem.

 

Este ano prometo que apenas falarei da beleza

Que irradia do Natal na gruta de Belém.

Prometo que, por maior que seja a tentação

Não falarei dos que vendem, com baixeza, 

O mistério que anunciava uma nova estação,

Apenas falarei da alegria que o Natal tem. 

29
Out21

Penafiel 73

Zé Onofre

                     73

 

___/___/978

 

O método científico na análise da Batata

 

Iª Fase – a preparação.

 

Verificar se é boa a batata.

Esterilizá-la bem esterilizada.

Ter cuidado com a bata

Não vá estar conspurcada.

 

Ter muito cuidado com as mãos.

É necessário que estejam desinfetadas.

Chama-se também atenção

Para as ferramentas a serem usadas.

 

 

A tina, o bisturi, a lamela,

O microscópio, o próprio laboratório

Será mesmo conveniente fechar a janela

Não se vá introduzir algum micróbio.

 

Continuemos o nosso trabalho, então.

Com muito cuidado e leveza,

Rapidez e bom golpe de mão

Descasquemos a batata com destreza.

 

Na tina, em água esterilizada,

Introduzimos a batata a demolhar.

Entretanto na mesa preparada

Meditamos em hipóteses a verificar.

 

IIª fase – a hipótese

 

Que será que a batata tem?

Terá açúcares, sais minerais?

Ou será algo em que ninguém

Pensou ainda jamais?

 

Não! Já sei. Eureka. Descobri.

Começo a ver, então, imagens

Penso aquilo que nunca vi.

Enche-se-me a cabeça de miragens.

 

Será certo o que vejo de repente?

Uma enorme gota de suor

Que cresce constantemente

E se torna cada vez maior?

 

Penso de maneira diferente.

Tento outro , com outro olhar

Já não é só o suor que se pressente,

É também um povo a trabalhar.

 

Vejo Trás-os-Montes. Num relance

Todas as courelas do meu país a correr.

Enche-se-me o peito de ar, fico em transe,

Sinto-me sufocar, nem sei que fazer.

 

IIIª Fase – a verificação

 

Mas não quero crer ainda. Não quero crer.

Corro para a tina, preparo o material.

Pego no microscópio, sempre a correr.

Acalmo os nervos, não vá ver mal.

 

Vi. Vi claramente visto

Sem dúvidas com toda a clareza

Naquele pequeno, minúsculo interstício

Toda a nossa miséria e grandeza.

 

Vi sangue – sangue senhores de escravos.

Vi azorragues, naus e caravelas.

Vi pimenta, canela, noz-moscada, cravo.

Muito mais vi naquela pequena lamela.

  Zé Onofre

05
Ago21

Souto 22

Zé Onofre

                  22

05/12/975

De Viagem

                       I

Se observares bem o postal

Concluirás que não há somente

Uma vista a perder-se longamente

De que a ponte é o centro por sinal.

 

Se acaso o teu olhar não for igual

Ao da atarefada e cansada gente,

Verás que os cabos são uma corrente

De muito esforço, dor, suor e sal.

 

Notarás ali naquela elegante ponte

Não há só ferro ordenado e cravado

Mas algo que desce por ela do monte

 

Até este lado do Tejo alargado.

Sob o tom vermelho se esconde,

Tinta e sangue bem misturado.

                        II

À espera

Neste canto de um café

A viver as pessoas em mim

E a ser vivido nelas,

Ou simplesmente ignorado.

Aqui neste canto, onde me escondo

Do ruído, dos gritos, do fumo e dos olhares,

Tento descobrir homens livres,

Encontro servidão.

Ali,

Naquelas paredes invadidas por cartazes.

Na imprensa escrita

Onde o pensamento se materializa

Em palavras livres,

E não canal de ressonância

Das palavras dos outros.

Aqui,

Neste canto do café

Onde continuo à espera,

Ser anónimo e sem importância,

Talvez ignorado de todos,

Ouço falar de mim.

Não de mim propriamente,

Mas daquele ser genérico e generalizado,

Nas bocas desconhecidas que me desenham,

No grito vermelho das palavras

Que escorrem pelas paredes.

Aqui,

Nesta periférica Lisboa

Onde a vida se faz,

Em ritmos monotonamente cadenciados.

Dia, após dia, após dia ainda,

Presos a uma roda que oprime

A que se chama progresso,

A que se chama civilização.

Aqui,

Onde espero encolhido neste canto,

Tentando perceber os outros,

Os seus pensamentos,

As suas esperanças,

Através dos seus gestos,

Das suas palavras.

Distraído que sou

Deixo-os escapar por entre os dedos.

     Zé Onofre